Já pensou em dar os seus próprios significados para as palavras? João Doederlein, autor de O livro dos ressignificados fez isso. Criou significados pessoais e poéticos para palavras do seu cotidiano.

São verbetes cheios de jogos de palavras, intertextualidades e boa poesia. Além disso, o livro também traz belos poemas e textos que se aproximam do gênero crônica. E o tema principal é, como acontece nos textos líricos em geral, o Amor.
Mas há também outros, como as relações familiares, as questões mais banais do dia a dia e até mesmo os signos do Zodíaco.
Saiba, então, um pouco mais sobre esse livro que nos leva a pensar sobre o amor e a poesia de um jeito diferente e divertido.
O livro dos ressignificados – título
Ressignicar quer dizer significar de novo ou, ainda, dar um novo significado. E é isso mesmo o que acontece com os muitos verbetes do livro de João Doederlein.

Se procurarmos pelas palavras apresentadas nessa obra em um dicionário certamente encontraremos significados bem diferentes dos dados por João a elas. Isso porque os dicionários trazem sentidos comuns e denotativos para as palavras. Já o autor, não.
Verbetes
Veja só o verbete da palavra Amor em um famoso dicionário e em O livro dos ressignificados.
Amor (subst. masc.)
1 forma de interação psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade imanente, seja por formalidade social
2 atração afetiva ou física que, devido a certa afinidade, um ser manifesta por outro
2.1 forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais
2.2 atração baseada no desejo sexual; afeição e ternura sentida por amantes
2.3 p.ext. relação amorosa, aventura amorosa; caso, namoro
2.4 p.ext. atração sexual natural entre espécies animais
2.5 p.met. o ato sexual ‹fizeram a. naquela noite›
2.6 afeição baseada em admiração, benevolência ou interesses comuns; calorosa amizade; forte afinidade ‹a. pelos antigos colegas›
3 p.ext. força agregadora e protetiva que sentem os membros dos grupos, familiares ou não, entre si ‹a. filial, a. de mãe› ‹o a. dos torcedores pelo seu clube›
4 p.met. a pessoa ou a coisa amada ou apreciada (tb. us. no pl.) ‹meu a. acordou cedinho hoje› ‹seus a. eram a Rosinha›
5 comunhão íntima, coesão com o universo, com ou sem conotação religiosa
5.1 rel Deus como princípio dessa coesão universal ‹supremo a.›
5.2 rel sentimento como de afeição e benevolência paterna atribuído a Deus em relação aos homens ‹a. de Deus, a. divino›
5.3 rel devoção afetuosa devida a Deus por suas criaturas
5.4 rel sentimento de caridade, de compaixão de uma criatura por outra, inspirada pelo sentido de sua relação comum com Deus ‹a. ao próximo, a. pelos pobres›
6 fig. devoção de uma pessoa ou um grupo de pessoas por um ideal concreto ou abstrato; interesse, fascínio, entusiasmo, veneração ‹herdou do pai o a. pelo mar› ‹a. à pátria› ‹a. ao teatro›
7 p.met. o objeto de tal interesse ou veneração ‹seu a. sempre foi o automobilismo› ‹livros e vinhos são os seus a. atuais›
8 demonstração de zelo, dedicação; fidelidade ‹a. ao trabalho› ‹a. do cão por seu dono›
9 ambição, cobiça
10 mit um deus ou a personificação do amor [Cupido (na Grécia, Eros), Vênus (na Grécia, Afrodite)]
11 mit cada uma das divindades infantis subordinadas a Vênus e a Cupido
(Dicionário Houaiss, in: https.houaiss.uol.com.br)
amor (s.m.)
é o resumo do infinito. é o laço entre dois corações. é um sorriso frouxo demais. é quando a gente escuta o mundo inteiro no silêncio de alguém. é o ópio do coração. é um cafuné bem-feito. é encontrar um lar em outro peito.
às vezes tem quatro patas e um focinho. às vezes tem nome, e quando vai embora…
(João Doederlein. O livro dos ressignificados.)
Deu pra perceber a diferença, né?!
Embora o texto de João apresente a palavra seguida de sua classe gramatical e gênero, como nos dicionários, os significados, ou acepções, dados a ela são bem mais pessoais e poéticos.
Outro ponto que chama a atenção nos verbetes de O livro dos ressignificados são as letras iniciais minúsculas nas frases que funcionam como acepções para as palavras. Podemos ler essa opção do autor como uma forma, talvez, de nos dizer: “Ei, isso não é um dicionário!”
E não é mesmo! Seus verbetes estão muito mais para poesia. Concorda?
O livro dos ressignificados – Estrutura
O livro está organizado em seis partes. E funciona como uma compilação de verbetes/poemas em que cada parte é introduzida por um texto relacionado ao tema de cada dessas partes.

Essas partes têm títulos: o jardim, o zodíaco, o coração, a mente, a cidade, a história de nós dois. Cada parte traz uma série de palavras e seus significados (ou ressignificados) que se relacionam ao tema da respectiva parte.
Por exemplo, na parte entitulada a mente, há o verbete esquecimento:
esquecimento (s.m.)
é o único mal que consegue matar o amor. é quando a saudade tem prazo de validade. é o nada. é aquilo que ausências demais podem causar. é o silêncio quando eterno. é a última tentativa de um coração atormentado. é para onde gostaríamos de mandar dias ruins. também chamado de oblívio.
inevitável, diria Hazel Grace.
(João Doederlein. O livro dos ressignificados.)
O livro dos ressignificados – Recursos poéticos
Para escrever seus verbetes, João se utiliza de vários recursos poéticos, muita intertextualidade, metáforas, antíteses, trocadilhos, ironias, humor e leveza.
Observe como ele utiliza a intertextualidade no verbete da palavra castanho, por exemplo, na última parte do livro – a história de nós dois.
castanho (adj.)
é a cor que mais me encanta. é o tom de mel do seu olhar. é a tinta que passaram na sua alma quando você nasceu. é ter olhos de Nutella e lábios de avelã. é cor injustiçada. é ser comum nos olhos para ser rara de coração. é a tempestade que chega.
“os olhos de cigana oblíqua e dissimulada”.
(João Doederlein. O livro dos ressignificados.)
O verbete castanho traz três citações que dialogam com outros textos bastante conhecidos. Primeiro, a palavra Nutella, nome de um doce famoso. Ao dizer que a pessoa amada tem “olhos de Nutella”, temos também uma metáfora. Ou seja, os olhos dessa pessoa são tão agradáveis quanto esse doce.
Depois, na acepção “é a tempestade que chega”, é uma canção que é lembrada. A música Tempo perdido, da banda Legião Urbana. Veja:
“Veja o sol desta manhã tão cinza
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
Castanhos“
(Legião Urrbana. Tempo perdido.)
E há ainda uma citação explícita ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas.
(Machado de Assis. Dom Casmurro.)
E há também nesse verbete uma antítese no trecho “ser comum nos olhos para ser rara de coração”, em que as palavras comum e rara estabelecem uma oposição.
Os olhos de grande parte da pessoas no Brasil são da cor castanho, por isso, o autor emprega o adjetivo “comum”. Já “rara” diz o quanto a pessoa a quem ele se dirige tem um bom coração, é uma pessoa especial, ou seja, o contrário de uma pessoa comum.
Conclusão
O livro dos ressignificados, de João Doederlein, é uma coletânea de verbetes/poemas que nos encanta por sua simplicidade, leveza e humor.
Uma obra marcada pela subjetividade que nos leva a pensar sobre o poder das palavras e a sua presença em nossas vidas diariamente. Já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade em seu poema “O lutador”:
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida
(…)
(Carlos Drummond de Andrade. In: José. Rio de Janeiro: José Olympio, 1942.)
De fato, lutamos constantemente com as palavras, buscamos por elas para as usar em nossa comunicação diária. Mas também podemos tirá-las para dançar, como faz João, brincar com seus significados e ressignificá-las.
O livro dos ressignificados é uma leitura gratificante e divertida, sim. Mas é também uma boa oportunidade de refletirmos sobre a força das palavras e a importância de sabermos usá-las da melhor forma que pudermos.
P.S.: Assista a uma entrevista de João Doederlein ao canal da Tv Senado em 2019 e conheça um pouco mais sobre esse escritor.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

Ótima resenha sobe o livro, ajudou bastante para a nossa prova Samira.
Adorei Samira ! 💜