O regionalismo literário brasileiro é a tendência crítica e estética que enfatiza a cor local: traços linguísticos, culturais, econômicos, históricos e geográficos de cada região do país.
Em vez de tratar o “Brasil” como bloco homogêneo, o regionalismo observa variações de léxico, costumes, paisagem, estrutura fundiária, relações de poder (como coronelismo) e dinâmicas sociais (migração, seca, trabalho rural).
Essa orientação aparece já no Romantismo, ganha densidade no Realismo e no Naturalismo e atinge um pico no chamado Romance de 30, dentro do Modernismo.
Conceito e características centrais
No regionalismo, a narrativa busca verossimilhança sociocultural por meio de:
- Ambientação precisa (sertão, engenho, estância, interior paulista, pampas).
- Registro linguístico marcado (dialetos, brasileirismos, oralidade).
- Temas socioeconômicos (seca, latifúndio, decadência de engenhos, êxodo).
- Ponto de vista situado (narrador e personagens imersos no contexto).
- Documentalidade sem perder o projeto estético (descrição + crítica).
Esses traços formam um “mapa” interno do país e são reconhecidos em manuais e verbetes de referência.
Primeira fase: Romantismo regionalista (meados do séc. XIX)
Entre o final do século XVIII e meados do XIX, autores românticos incorporam ambiente e costumes locais ao romance, consolidando o gênero no Brasil. José de Alencar é referência, ao lado de Bernardo Guimarães, do Visconde de Taunay e Franklin Távora.
Embora José de Alencar seja mais lembrado pelo indianismo, sua obra também abrange vertente urbana e regional, e cumpre papel central na consolidação do romance nacional.
Obras como O guarani (1857) e Iracema (1865), ainda que indianistas, fazem parte do mesmo projeto de nacionalização do enredo e da linguagem.
Transição e redefinições no início do séc. XX
No começo do século XX, o regionalismo ganha perfil crítico. Monteiro Lobato, em Urupês (1918), constrói a figura do Jeca Tatu como síntese do atraso do interior paulista, ampliando o debate sobre saneamento, política agrária e estereótipos do “caboclo”.
O livro tensiona a imagem folclórica do campo e influencia a leitura pública do Brasil rural durante décadas.
O ápice moderno: o Romance de 30 (década de 1930)
Com a segunda fase do Modernismo, o regionalismo deixa de ser apenas descritivo e torna-se analítico: foco em estrutura social, trabalho, fome, seca, violência simbólica, contradições do latifúndio.
A prosa é mais contida, com economia estilística, narrador objetivo e focalização que evidencia conflito de classe e de valores. É a fase em que o recorte regional serve a uma crítica nacional.
Autores e obras centrais do Romance de 30
Graciliano Ramos
Suas obras principais, São Bernardo (1934), Vidas Secas (1938), através de uma linguagem enxuta, constróem o retrado do sertão nordestino, da saga dos retirantes, e o sofrimento oriundo da seca.
José Lins do Rego
Descreve o ciclo da cana-de-açúcar iniciado com Menino de Engenho (1932): memorialismo, decadência dos engenhos, recomposição histórica do Nordeste açucareiro.
Jorge Amado
Retrato lírico e realista da cultura, dos costumes e das desigualdades sociais da Bahia em obras como Capitães da Areia (1937) e Gabriela, Cravo e Canela (1958). Através de suas personagens marcantes, construiu um retrato vivo do Nordeste que une crítica social e celebração da identidade cultural brasileira.
Érico Veríssimo
Ciclo de O Tempo e o Vento (1949): regionalismo sulino articulado a uma perspectiva histórica de longa duração (povoamento, guerras, formação de elites).
Guimarães Rosa
Conhecido por reinventar a linguagem literária ao narrar o sertão mineiro em obras como Grande sertão: veredas (1956) e Sagarana (1946). Suas personagens dão voz ao homem do interior, explorando suas lutas, crenças e contradições.
Autores do Regionalismo Brasileiro contemporâneo
Milton Hatoum
Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005): ambientação na Amazônia urbana e ribeirinha; conflitos familiares atravessados por disputas políticas e memórias coloniais; linguagem refinada, marcada pelo lirismo e pela multiplicidade de vozes.
Conceição Evaristo
Ponciá Vicêncio (2003), Becos da Memória (2006): regionalismo ligado à experiência negra nas periferias urbanas e zonas rurais de Minas Gerais; oralidade afro-brasileira, memória coletiva e resistência; escrita marcada pela “escrevivência”, que une experiência pessoal e narrativa ficcional.
Ronaldo Correia de Brito
Galileia (2008), Faca (2003): ambientação no sertão nordestino; herança da cultura oral, religiosidade popular e conflitos familiares; linguagem seca e cortante, entrelaçada com o trágico; abordagem da decadência de um mundo rural em transformação.
Itamar Vieira Junior
Torto Arado (2019), Salvar o Fogo (2023): sertão baiano e comunidades rurais como palco de resistência; personagens negros, trabalhadores e mulheres protagonistas; oralidade marcada por ancestralidade afro-indígena; denúncia social e espiritualidade profunda, com ecos da tradição mística.
Regionalismo brasileiro: outros elementos relevantes
- Ambientação: sertão nordestino (seca), zona da mata açucareira (engenhos), interior paulista (caboclo), pampas (estâncias).
- Linguagem: oralidade, dialetalismo, arcaísmos quando pertinentes, e registro técnico (fauna, flora, trabalho rural).
- Narrador e foco: uso recorrente de narrador heterodiegético (terceira pessoa) com focalização interna; no modernismo, também primeira pessoa introspectiva (São Bernardo).
- Temas socio-históricos: coronelismo, tenentismo ao fundo, êxodo rural, migração, pobreza estrutural, papel do Estado e modernização desigual.
Conclusão
O regionalismo é mais que “paisagem” na literatura brasileira: ele funciona como metodologia de leitura do país, conectando variação linguística, estrutura social e história regional a projetos estéticos distintos — do Romantismo ao Romance de 30.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
