Capitu é certamente a personagem feminina mais famosa de nossa literatura. Criada por nosso maior mestre das letras, Machado de Assis, ela ainda hoje gera inúmeras discussões entre todos os que se aventuram pelas páginas do romance Dom Casmurro.
Desde a publicação do livro, em 1899, leitores e estudiosos elaboram questionamentos como: Capitu traiu ou não traiu? Seria ela uma vilã dissimulada ou apenas uma vítima do ciúme e da insegurança de seu marido e narrador da história?

Neste post, propomos a você, caro leitor, que reflita conosco sobre essa icônica personagem que permance ainda hoje como o maior enigma de nossa literatura.
Quem é Capitu?
Capitu é a vizinha e amiga de infância de Bento Santiago, o narrador do romance Dom Casmurro. Ela é filha do Pádua, funcionário público, e de dona Fortunata. A família vive em condições modestas ao lado do casarão de dona Glória, mãe de Bentinho.
Capitu e Bentinho crescem juntos e, na adolescência, descobrem-se apaixonados. Essa descoberta lhes trará muitos desafios até que consigam finalmente se casar.
O casamento, no entanto, será conturbado, marcado pelos ciúmes, pelas pressões sociais e pela desconfiança de Bentinho.

Ele, o narrador, descreve Capitu como uma jovem de personalidade forte, inteligente e carismática. É morena, tem cabelos volumosos e olhos perturbadores. Pelo menos, para ele, que compara os olhos da menina à ressaca do mar.
Os “olhos de ressaca” têm ainda uma outra definição que ficou bastante famosa fora das páginas do livro. Foi dada por outro personagem do livro, José Dias, que define os olhos de Capitu como sendo de “cigana oblíqua e dissimulada”.
Capitu pelos olhos de Bentinho
Bentinho é o narrador de Dom Casmurro e é pelos olhos dele que a história é contada. No momento em que o faz, Bentinho já não é mais o menino apaixonado, mas um velho solitário e amargurado que busca “atar as duas pontas da vida”: a velhice e a adolescência.
Para isso, volta ao passado, justamente no momento em que se descobre apaixonado pela vizinha Capitu. Mas há um problema que impede esse amor, a promessa de dona Glória de torná-lo padre.

Desde os esses momentos iniciais, o narrador já começa a compor uma imagem dúbia de sua amada, ora é uma menina gentil e alegre, ora esperta e cheia de artimanhas, sempre mais “mulher do que ele fora homem”.
O modo como Bentinho vê Capitu é motivado por seu sentimento de inferioridade, seu ciúme, suas inseguranças e dúvidas. E também por seu amor, pela nostalgia das emoções da primeira paixão.
Cabe, então, a nós, leitores, entender os fatos narrados, considerando as limitações e complexidades desse narrador. Muito mais do que por esse retrato que ele tenta compor de “amiga” e amada.
A suposta traição
O grande conflito da trama de Dom Casmurro surge após a amizade entre Capitu e Escobar, amigo que Bentinho fez no seminário (lugar para onde ele foi mandado para estudar para ser padre).

Pequenos gestos, olhares e coincidências entre sua amada e seu amigo vão despertando a desconfiança do protagonista, que passa a acreditar em uma possível traição.
Depois de se livrar do seminário e conseguir se casar com Capitu, os ciúmes de Bentinho se agravam. E suas suspeitas sobre a mulher e o melhor amigo também.
A situação torna-se ainda mais séria com a morte repentina de Escobar e a reação de Capitu diante do morto. Com um discurso preparado para fazer diante do caixão do amigo, Bento olha para sua mulher e vê os seus “olhos de ressaca” pousarem sobre Escobar.

Os mesmos olhos com que ela olhara tantas vezes para ele, Bentinho. E o narrador diz, então, que essa era a prova definitiva da traição dos outros dois.
Há ainda um outro motivo das certezas de Bentinho: o filho Ezequiel. Com o passar dos dias e o crescimento do menino, o narrador diz que ele vai se parecendo cada vez mais com Escobar.
No entanto, o próprio narrador, durante o seu relato, vai nos dando também provas de que todas as acusações impostas a Capitu são devidas ao ciúme exagerado de Bentinho. Além de elementos que inocentam a mulher.
A semelhança entre Ezequiel e Escobar, por exemplo, também aparece entre Capitu e a mãe de Sancha, sua amiga. Ao procurar por Capitu na casa de Sancha, Bentinho encontra um retrato da mãe da moça e percebe como são parecidas.
Assim, sem apresentar nenhuma prova concreta e trazendo informações contrárias às acusações de traição, tudo fica no campo da dúvida.

O fato é que Capitu sempre foi um enigma para Bentinho, um mistério, algo além de sua compreensão e alcance. E, como só temos a sua visão dos fatos, Capitu também é um enigma para nós.
Capitu: vítima ou vilã?
Se estivéssemos em um tribunal e Capitu fosse a ré acusada de adultério, certamente teríamos argumentos tanto para o advogado de defesa quanto para o promotor, o advogado de acusação. Vejamos, então, esses argumentos.
Argumentos de defesa
- Narrador ciumento e parcial: Bentinho é notoriamente inseguro e enciumado, o que contamina sua visão sobre Capitu;
- Ausência de provas: O relato nunca confirma a traição e os indícios são baseados apenas na interpretação de Bentinho;
- Mulher à frente de seu tempo: Capitu é inteligente, perspicaz e ousada, qualidades que incomodam, ainda mais em um sociedade patriarcal como a do século XIX;
- Preconceito social: Capitu vem de uma família de menor prestígio social, o que a torna mais vulnerável a julgamentos.
Argumentos de acusação
- Comportamento sedutor: Capitu é descrita como dissimulada e capaz de manipular situações a seu favor;
- Dúvidas deixadas pelo narrador: a presença de Escobar em casa com Capitu na ausência de Bentinho, a semelhança entre Ezequiel e Escobar são algumas das pistas misteriosas e ambíguas que levantam suspeitas da traição;
- O silência e a omissão de Capitu: Em vários momentos, Capitu parece esconder sentimentos e intenções e isso aumenta a aura de desconfiança em torno dela.
A permanência do enigma literário
O Realismo, escola literária à qual pertence o escritor Machado de Assis, produziu vários romances pautados no adultério feminino. Esse tema tornou-se muito recorrente e demonstra a intenção dos autores de relacioná-lo à mulher burguesa vítima da educação romântica.
Ou seja, as mulheres burguesas da época, dadas à leitura de romances românticos, acabavam por viver sonhando com amores e amantes que só existiam nos livros. Frustradas com seus casamentos, tornavam-se presas fáceis de perversos sedutores e arruinavam os casamentos.
Histórias assim se repetem em romances como Madame Bovary, de Gustave Flaubert e O primo Basílio, de Eça de Queirós. Machado, então, se apropria do tema em Dom Casmurro, mas o subverte.
E é isso que torna essa obra tão superior. O adultério praticado por Capitu é apenas uma suposição, não é uma certeza. A questão fica em aberto e cabe ao leitor chegar a suas próprias conclusões.

As múltiplas interpretações da obra garantem o seu caráter enigmático e a dúvida se mantém por mais um século. Dom Casmurro permanece em nosso imaginário, levantando as mesmas inquietações década após década.
Capitu tornou-se um símbolo da ambiguidade humana e da complexidade das relações amorosas. Sua figura transcendeu o romance a ponto de a palavra “capitu” ser usada, em alguns contextos, para definir mulheres misteriosas e sedutoras.
Conclusão
Capitu é, sem dúvida, uma das personagens mais fascinantes e controversas da literatura brasileira. Ao longo das páginas de Dom Casmurro, ele se refela complexa, inteligente e humana – características que a tornaram inesquecível.
Se foi vítima ou vilã, cabe a cada leitor decidir. O que não se pode negar é que Capitu, e o romance Dom Casmurro, permanecem até hoje como um convite irresistível à reflexão sobre ciúmes, preconceitos e os limites da narrativa.
Dom Casmurro é uma leitura obrigatória para todo leitor, principalmente para os leitores brasileiros. Fizemos aqui um recorte voltado para essa personagem marcante que é Capitu. Mas há muitos outros aspectos que fazem dessa obra, talvez, a maior de toda a nossa literatura.

Inclusive, pode-se afirmar que o grande culpado da história contada no livro é outro. Mas isso é conversa para outro artigo.
P.S.: As imagens desse artigo (menos as duas últimas) pertencem à minissérie Capitu produzida pela rede Globo, com direção de Luís Fernando Carvalho, e exibida em dezembro de 2008.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

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