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Olhos d’água, coletânea de contos de Conceição Evaristo: resenha

  • Litera.ria 

Olhos d’água, de Conceição Evaristo, publicado em 2014, é uma coletânea de contos sobre a vida de pessoas que vivem em condições adversas e, constantemente, têm de lutar para sobreviver a essas dificuldades.

Apesar do cenário, tantas vezes opressor e violento, há nessas personagens algo de muito genuíno, um desejo que emerge da brutalidade na qual estão inseridas e que as impulsiona a continuar vivas.

Os contos apresentam enredos cinematográficos, na medida em que as ações são rápidas, encadeando-se através de pequenos cortes que se sobrepõem.

Esses enredos são também construídos de forma folhetinesca, com reviravoltas, surpresas e desfechos ora trágicos, ora inesperados, pois quebram a expectativa construída pela narrativa, numa espécie de anticlímax. 

Vejamos, a seguir, uma breve apreciação de cada um dos contos.

Olhos d’água

Conto que dá nome à coletânea, “Olhos d’água” narra a história de uma mulher que, certa noite, acorda assustada com uma triste constatação: ela não se lembra mais da cor dos olhos de sua mãe. Esse acontecimento a intriga e faz com que se sinta culpada.

Como é possível esquecer dos olhos de sua própria mãe?

A imagem mostra um olho de mulher negra e triste

O enredo se desenvolve através das lembranças de infância da protagonista. Principalmente, a vida no interior com a mãe e as irmãs. Uma vida carregada de dor e fome, mas também de afeto e cumplicidade.

A personagem resolve, então, viajar para sua cidade natal para reencontrar a família e poder olhar nos olhos da mãe. Rememorar a cor que eles carregam.

Há nesse conto muito da biografia da própria Conceição Evaristo, que também teve uma infância difícil e cheia de percalços. É a “escrevivência” de que fala a autora, neologismo que associa escrita e vida em uma mesma ação.

Ana Davenga

Neste conto temos uma “cena” bastante novelesca. Ana é a mulher de Davenga, chefe de um grupo criminoso que domina a favela onde moram.

Ana sabe dos perigos de viver com um homem como Davenga, mas o reconhece como seu homem e o aceita.

A imagem mostra uma bela mulher negra. Combinando com os olhos descritos no conto, os olhos d'água da mãe da narradora.

Certa noite, Davenga não volta pra casa como de costume. Ana estranha a ausência do marido e também a presença dos companheiros dele em sua casa, com suas esposas.

Ela teme pela vida de seu homem. Este chega finalmente à casa alegre e festeiro e Ana, então, descobre que era uma surpresa para comemorar seu aniversário.

A história poderia terminar aí, com um desfecho feliz. Mas Davenga tem muitos inimigos. Um deles é a polícia, que está em seu encalço.

O desfecho é surpreendente e digno do capítulo final de uma novela televisiva.

Duzu-Querença

Era uma vez uma menina que teve a infância roubada pelo abandono dos pais, pela necessidade de abrigo e pelo abuso sofrido na casa de prostituição em que morava.

Duzu-Querença trabalhava em um prostíbulo para sobreviver, depois que os pais ali a deixaram. Ela era curiosa e entrava nos quartos das prostitutas sem aviso, encontrando-as na cama com os homens, seus clientes.

A imagem mostra uma menina negra de olhar triste, o que condiz com a personagem Duzu-Querença de um dos contos de Olhos d'água.

Duzu não entendia muito o que acontecia ali até que um dia um daqueles clientes a forçou a deitar-se com ele. Ela continuou a não saber muito o que acontecia, apenas aceitou o destino que lhe era imposto e muito cedo tornou-se também prostituta.

Toda a trajetória de Duzu foi marcada pelo abuso, abuso psicológico, físico, social e moral.

Maria

Maria espera o ônibus no ponto com a sacola de compras na mão. A condução chega. Ela entra e senta em um dos assentos. Logo em seguida, um homem se senta ao seu lado. É um ex-namorado. Mais que isso, é o pai de seu filho.

Eles conversam. O homem pede perdão por abandoná-la, a ela e ao filho. Em seguida, levanta-se e toma o ônibus de assalto.

A imagem mostra uma mulher, como Maria do conto, sentada em um ônibus.

Recolhe, junto com alguns companheiros, os pertences dos passageiros. Os bandidos descem do ônibus. Maria fica. Alguém a reconhece como companheira de um dos assaltantes e a acusa de ser cúmplice deles. Maria nega. É inútil.

Esse é um conto de grande força dramática, muito marcado pelas ações das personagens. A narrativa chega a ser sufocante, combinando-se à angústia da protagonista acusada de criminosa injustamente.

 Quantos filhos Natalina teve?

Essa é a história de Natalina. Ela está em sua quarta gravidez. Os filhos gerados nas três gestações anteriores Natalina deu sem sentir nenhum peso por isso.

Já este que ela está gestando é seu. Ela o quer com todas as suas forças.

A imagem mostra uma mulher de olhar atrevido que bem poderia ser a Natalina do conto de Conceição Evaristo.

Natalina conheceu o sexo muito cedo e, aos quatorze anos, engravidou pela primeira vez. Suas gravidezes deixaram severas marcas psicológicas e esta última não é diferente.

No entanto, Natalina quer esse filho porque esse precisou lutar pela vida ainda no ventre da mãe. Esse é um conto com desfecho impactante, surpreendente e brutal.

Salinda

Salinda é casada e tem filhos. Sua relação com o marido, no entanto, é muito ruim. Movido pelo ciúme, ele controla todos os passos da mulher e faz-lhe ameaças terríveis.

Por outro lado, Salinda está vivendo um novo amor e é nessa relação que ela encontra forças para enfrentar o marido.

A imagem mostra um casal de mulheres.

Esse conto traz uma situação vivida por muitas mulheres que se submetem a relações falidas para manter a família unida e proteger os filhos. Todo esse esforço, porém, acaba por potencializar os abusos impostos por seus cônjuges.

Luamanda

Este conto narra a história de uma mulher livre que explora sua sexualidade sem medo e sem amarras.

Luamanda já é uma mulher na casa dos cinquenta anos que reflete sobre suas experiências sexuais e as rememora enquanto se arruma para encontrar o novo amante.

A imagem mostra uma bela mulher diante de um espelho, vaidosa como a personagem do conto Luamanda.

Mesmo já tendo vivido e experimentado muita coisa, Luamanda ainda tem o seu desejo muito vivo.

“Luamanda” aborda questões como a relação entre sexo e maturidade e a liberdade sexual feminina, tabus sociais que precisam ser rompidos.

O cooper de Cida

Cida mora em Copacabana e todas as manhãs bem cedo corre à beira do mar. Cida tem muita pressa, faz tudo correndo e cronometradamente.

Tem sempre tudo organizado e planejado em sua mente: a corrida, o trabalho, o descanso, o amor, tudo em seu lugar e hora.

A imagem mostra a praia de Copacabana, cenário do conto O cooper de Cida.

Até que um dia ela é tomada por uma descoberta. Ao fazer o seu cooper matinal, Cida vai desacelerando. Ela olha para o mar e vê um homem nadando feliz e calmo, ali, em plena terca-feira, às seis da manhã.

Ela diminui o ritmo da corrida até parar completamente. Fica diante do mar e observa o seu ritmo. Acaba esquecendo da hora, se atrasando para o trabalho e decidindo tirar o dia de folga.

Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos

Essa é a história de uma menina chamada Zaíta que sai pela favela onde mora em busca de uma figurinha perdida.

Zaíta mora com a mãe que está sempre atarefada e preocupada com as contas para pagar. Ela recomenda às crianças que não deixem brinquedos espalhados pela casa e é sempre muito severa com as meninas.

a imagem mostra uma fotografia de uma favela, cenário do conto Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos.

Zaíta tem uma irmã gêmea, Naíta. Ela tem certeza que Naíta pegou sua figurinha sem pedir e é por isso que sai de casa à procura da irmã sem que a mãe perceba, deixando os brinquedos espalhados pelo chão.

Nos becos da favela, não encontra Naíta e continua a andar esquecendo-se dos perigos ao redor. Zaíta tem um irmão mais velho que luta para tomar a liderança do tráfico na comunidade e é em meio a um tiroteio por poder entre os traficantes que a menina está.

O desfecho dessa história é surpreendente. Esse  conto mostra a inocência sendo engolida pela violência e pela pobreza.

Di Lixão

Di Lixão é um garoto morador de rua que carrega muito ódio e dor dentro de si. Ele acorda com o dente doendo e chuta um companheiro que dorme debaixo de uma marquise junto com ele.

O outro menino levanta e devolve a violência aparentemente gratuita com um chute entre as pernas de Di Lixão. Este cai urrando de dor. Dói entre as pernas, dói a boca, dói a vida.

A imagem mostra um jovem dormindo na rua, como o personagem Di Lixão, do livro Olhos d'água.

O dente está infeccionado, há dias que vem sofrendo e a infecção acaba por debilitar o menino de forma irreversível.

Lumbiá

Lumbiá é um garoto que ama presépios. Ele vive com a mãe e a irmã. Vende balas e flores na rua para ajudar em casa.

O Natal está próximo e a sua maior alegria é ver os presépios. Aproveita o trabalho na rua para ver o máximo de presépios que puder. O mais bonito de todos é o que fica dentro de uma grande loja no centro da cidade.

A imagem mostra um presépio, como o que o personagem Lumbiá desejava ver.

O problema é que crianças só podem entrar nessa loja acompanhadas dos pais. E Lumbiá está muito longe de casa. Além disso, a mãe não tem tempo para ir com ele até ali.

Numa distração do segurança, o menino consegue entrar e ver finalmente o mais lindo dos presépios. Como em outros contos do livro, o desfecho de “Lumbiá” também nos surpreende e nos impacta.

Os amores de Kimbá

Esse conto tem como protagonista um jovem chamado Kimbá. Na verdade, seu nome é José. Mas adotou o nome Kimbá, recebido de um amigo que vive na cidade.

Kimbá mora no morro e sonha em mudar de vida. Em morar na cidade e ter uma casa decente. O amigo lhe apresenta uma moça por quem se apaixona. Kimbá é bonito, é grande, é desejável.

A imagem mostra um belo homem negro, como Kimbá.

Nessa narrativa, vemos o corpo negro colocado como objeto de fetiche, de desejo. Tanto a moça por quem Kimbá se apaixona como o amigo que lhe deu o novo nome desejam o moço favelado e esse desejo não tem limites.

A gente combinamos de não morrer

Esse conto tem três narradores, todos personagens da trama. Dorvi, jovem traficante; Bica, sua mulher; e Dona Esterlinda, mãe de Bica.

Dorvi tem muitos sonhos, deseja viver feliz com Bica e o filho que acabaram de ter. Mas seus negócios dão errado e ele é jurado de morte.

a imagem mostra uma mulher segurando o seu filho, como também ocorre no conto A gente combinamos de não morrer.

Bica sabe dos perigos que Dorvi sofre, mas aceita sua condição e destino. Dona Esterlinda gosta de ver novelas, são o seu modo de esquecer de sua própria realidade, e se preocupa com Bica, com o neto e com o genro.

São três vozes narrativas, cada uma com o seu próprio modo de lidar com a realidade e os seus perigos e limitações.

Ayoluwa

Uma comunidade que está morrendo. Os velhos não têm mais vontade de viver. Os jovens vivem deprimidos e tristes.

Até uma mulher, cujo nome quer dizer esperança, anunciar que terá um filho. A alegria retorna ao grupo e o nascimento de Ayoluwa faz com que todos sorriam novamente.

A imagem mostra uma bela criança negra, como Ayoluwa, simbolo de esperança do último conto do livro Olhos d'água.

Essa narrativa é uma espécie de lenda africana e traz uma mensagem positiva: a esperança por dias melhores.

Conclusão

Olhos D’Água é uma obra admirável e que suscita questionamentos e reflexões muito importantes. Seus contos mostram uma realidade muito dura e incômoda, muito incômoda.

E isso é o que os bons livros fazem: eles incomodam, nos tiram da mesmice, nos fazem pensar.

Conceição Evaristo, autora do livro Olhos d'água.

A escrita poética de Conceição Evaristo, embora carregada de beleza, não nos poupa de imagens tristes e cruéis. Racismo, violência, desigualdade social, abuso físico e psicológico, exploração sexual são frequentes em seus contos, ainda que a autora não mencione essas palavras explicitamente.

A vivência das personagens fala por si só e fala muito alto.

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