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Metalinguagem: a linguagem que fala de si mesma

O que é metalinguagem? É a linguagem que se volta para ela mesma. Ou seja, a metalinguagem acontece quando o texto faz referência a si mesmo ou ao como é produzido.

O que é metalinguagem?

Todas as vezes que há em um texto a referência a elementos ou à escrita do próprio texto, temos o que chamamos de metalinguagem.

O prefixo meta significa “através”. Assim, empregado junto à palavra “linguagem”, quer dizer a linguagem através de si mesma.

A metalinguagem é um recurso linguístico muito utilizado na literatura, principalmente a partir do Modernismo, estilo literário do século XX.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm

E, assim, nas calhas de roda,
Gira a entreter a razão
Esse comboio de cordas
Que chama o coração

(Ferrnando Pessoa)

Em “Autopsicografia”, Fernando Pessoa, poeta português que viveu no início do século XX, nos apresenta os elementos essenciais à existência da poesia e também das outras expressões da arte. São eles: o poeta, o leitor e a poesia.

Ao fazer isso, o poeta faz uso da metalinguagem, ao usar os seus versos, ou seja, a poesia, para falar daquilo que constitui a poesia. Assim, temos a linguagem que fala da linguagem ou que se volta para si mesma.

Origens teóricas da metalinguagem

A metalinguagem ocorre, portanto, quando a linguagem é utilizada para se referir a si mesma. Em outras palavras, é quando usamos palavras para falar sobre as próprias palavras, ou quando uma forma de arte reflete sobre sua própria criação.

Um dos principais teóricos da metalinguagem é o linguista Roman Jakobson, que identificou a função metalinguística como uma das funções essenciais da linguagem.

Segundo Jakobson, essa função se manifesta quando o código linguístico é usado para explicar ou esclarecer o próprio código, como em definições de palavras ou em discussões sobre gramática.

Na literatura, a metalinguagem é um recurso frequentemente utilizado por autores para explorar a natureza da ficção e o processo de escrita.

Obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, exemplificam o uso da metalinguagem para dialogar com o leitor, questionar convenções literárias e refletir sobre a própria construção da narrativa.

Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A metalinguagem na Literatura

Assim como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, e em outras obras de Machado de Assis, como o famoso romance Dom Casmurro, a metalinguagem está presente em inúmeras obras de nossa literatura.

Ao fazer uso desse recurso, os autores nos levam a refletir sobre o papel da própria literatura, do escritor e também do leitor. Além disso, a metalinguagem é uma forma de envolver ainda mais o leitor na fruição do texto.

Veja abaixo alguns exemplos de metalinguagem na literatura brasileira.

““Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato.””

Clarice Lispector. A hora da estrela.

Em A hora da estrela, romance da escritora Clarice Lispector, o narrador Rodrigo S. M. recorre constantemente à metalinguagem para explicar a história que está narrando, a da nordestina Macabéa.

Contar é muito dificultoso. As pessoas pensam que não é. Que nem dar um tiro — bum! — na parede. Mas não é não. Primeiro a gente espia a isca, que nem peixe. Depois, fisga com a fisga. Depois, puxa. Depois, a gente não sabe se o peixe é grande ou pequeno. Depois, a gente não sabe se o peixe é do rio ou da lagoa. Depois, a gente não sabe se o peixe é de comer ou de olhar. Depois, a gente não sabe se o peixe é de agora ou de outro tempo. Depois, a gente não sabe se o peixe é de verdade ou de mentira.”

Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.

Nesse trecho, o narrador Riobaldo compara o ato de narrar à pesca, explicitando a complexidade e a incerteza do processo de contar histórias.

Através dessa metáfora, Guimarães Rosa reflete sobre a natureza da linguagem e a dificuldade de capturar a realidade em palavras.

Deus me fez um aprendiz de poeta.
Eu aprendi que as palavras não prestam para dizer o mundo.
Prestam para esconder.
Aprendi que as palavras prestam para não dizer.
Aprendi que as palavras prestam para desencontrar.

Manoel de Barros

Neste poema, Manoel de Barros utiliza a metalinguagem para refletir sobre a natureza da linguagem poética, destacando a sua capacidade de ocultar e revelar ao mesmo tempo.

Ele explora a ideia de que as palavras não são apenas ferramentas de comunicação, mas também instrumentos de criação e descoberta.

Outro poeta que também frequentemente fez uso da metalinguagem em seus poemas foi Carlos Drummond de Andrade. Veja a seguir trechos do poema O lutador.

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entretanto lutamos
mal rompe a manhã.

Carlos Drummond de Andrade

Nesses versos iniciais, Drummond já explicita a batalha do poeta com a linguagem.

Ele reconhece a aparente futilidade dessa luta, já que as palavras são entidades abstratas e escorregadias. No entanto, ele afirma que essa luta é inevitável e constante, começando logo ao amanhecer.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
nessa pele clara.

Carlos Drummond de Andrade

Aqui, o poeta personifica a palavra, dirigindo-se a ela como um adversário. Ele expressa o desejo de dominar a linguagem, de capturar sua essência e beleza.

Drummond revela a frustração e a paixão que permeiam o trabalho do poeta, que busca incessantemente a palavra perfeita.

A metalinguagem em outras expressões artísticas

A metalinguagem não se restringe à literatura. Ela está também em diversas outras obras de diversas expressões da arte.

Metalinguagem nas artes plásticas

Pintura A perspicácia, de René Magritte. O artista pinta a si mesmo ao pintar um pássaro.
A perspicácia, de René Magritte (1936)

Na obra A perspicácia, o pintor René Magritte retrata a si mesmo em seu ofício. Ele faz o seu próprio retrato, pintando um pássaro em uma tela.

Para tornar a metalinguagem ainda mais interessante, e também um tanto irônica, ele olha para um ovo sobre a mesa enquanto faz o retrato do pássaro.

A metalinguagem no cinema

Um ótimo exemplo de metalinguagem nas telonas é o filme Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes, e inspirado na peça teatral de mesmo título de Osman Lins.

Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes

Na cena acima, Leléu (Selton Mello) declara o seu amor a Lisbela (Débora Falabella). Para isso, faz comparações com situações clássicas das histórias de amor retratadas nos filmes que a mocinha está acostumada a assistir.

A metalinguagem na música

A música também frequentemente recorre à metalinguagem, como podemos ver na letra de Uma música, da banda Fresno, no álbum Redenção (2007).

Essa música começa assim,
Com um refrão que gruda em mim
E eu não sei mais o que fazer
Pra te esquecer, pra te esquecer
 
E a gente vai levando assim,
As nossas vidas sem um fim
E eu não sei mais o que dizer
Pra te esquecer, pra te esquecer

Fresno. Uma música.

Nesses versos, o vocalista Lucas Silveira descreve o início da própria canção, mencionando o refrão e a dificuldade de expressar sentimentos através da música.

A letra também reflete sobre a repetição e a progressão da canção, elementos essenciais na construção de uma música pop.

A metalinguagem no cotidiano

A metalinguagem está presente também na linguagem utilitária e cotidiana. Como nas conversas diárias em que fazemos uso de expressões como “O que você quis dizer com isso?” ou “Como eu estava dizendo,…”.

A propaganda também se utiliza muito desse recurso, tornando ainda mais expressivo o jogo de persuasão em que se fundamenta.

Um exemplo recente muito interessante foi a campanha do detergente Tide, no super Bowl. Assista a seguir.

A campanha brinca com os clichês de vários comerciais, e no final, se auto intitula como “O comercial de todos os comerciais”.

Essa campanha ganhou vários prêmios, e mostra como a metalinguagem pode ser uma ferramenta muito poderosa na publicidade.

Metalinguagem e reflexão crítica

Como é possível percebar, a metalinguagem não é um simples recurso estilístico, mas uma notável ferramenta de análise crítica.

Ao examinar o funcionamento da linguagem em seus diversos contextos, a metalinguagem pode ser um importante instrumento de análise de comportamentos sociais e levar-nos a reflexões de grande valor.

Ferramenta de análise

Em sua função analítica, a metalinguagem permite a desconstrução de narrativas, a identificação de padrões linguísticos e a explicitação de mecanismos de persuasão.

Ao analisar como a linguagem é utilizada em diferentes contextos, como na política, na mídia ou na literatura, é possível desvendar as estratégias de poder, as ideologias subjacentes e os pressupostos que moldam a comunicação.

A capacidade da metalinguagem de revelar ideologias e pressupostos decorre de sua natureza reflexiva.

Ao voltar-se para a própria linguagem, ela explicita as escolhas lexicais, as estruturas sintáticas e os recursos retóricos que moldam o discurso.

Essa análise permite identificar como a linguagem é utilizada para construir representações da realidade, para legitimar determinadas visões de mundo e para influenciar as percepções do público.

Metalinguagem e consciência linguística

A metalinguagem, ao promover a reflexão sobre a linguagem, desempenha também um papel fundamental no desenvolvimento da consciência linguística.

Ao tornar o usuário da linguagem mais consciente de suas escolhas e de seus efeitos, a metalinguagem o capacita a utilizar a linguagem de forma mais crítica e eficaz.

A consciência linguística, por sua vez, contribui para uma comunicação mais clara, precisa e responsável.

Ao compreender o poder e a complexidade da linguagem, o indivíduo se torna mais capaz de interpretar mensagens, de avaliar argumentos e de expressar suas próprias ideias de forma coerente e persuasiva.

A metalinguagem, é de suma importância para a construção de um pensamento crítico, e para uma correta interpretação do mundo, e de suas diversas formas de comunicação.

Conclusão

A metalinguagem, ao longo deste artigo, revelou-se um fenômeno multifacetado, intrinsecamente ligado à nossa capacidade de refletir sobre a linguagem e seus usos.

Desde suas raízes teóricas na linguística, com os trabalhos de Roman Jakobson, até suas manifestações na literatura, na música e na publicidade, a metalinguagem é uma ferramenta poderosa para explorar a natureza da comunicação humana.

Presente nas artes e no nosso cotidiano, a metalinguagem é um valioso recurso que nos leva a pensar sobre a importância e o papel da arte. Ela também nos torna mais conscientes do modo como a linguagem constrói significados e influencia nossas percepções.

Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

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