Comemoramos ontem o aniversário de Machado de Assis. Em 21 de junho de 1839, nascia em uma chácara no Morro do Livramento, subúrbio do Rio de Janeiro, o mestre maior da letras brasileiras.
Filho de um pintor, homem negro e neto de escravizados e de uma lavadeira, o menino Joaquim pouco frequentou a escola e cresceu aprendendo como podia tudo o que se referia às letras e à literatura para gradativamente tornar-se o maior escritor da Literatura Brasileira.
Neste artigo, falaremos sobre a história de vida de Machado de Assis, as características marcantes de sua escrita e suas maiores obras. Refletiremos também sobre o processo de branqueamento por que passou o escritor historicamente e as implicações decorrentes disso.
Biografia de Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Morro do Livramento, subúrbio do Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839. Filho de Francisco José de Assis , pintor e neto de escravizados, e de Maria Leopoldina, lavadeira e imigrante portuguesa.

Machado era, por isso, considerado mestiço, o que na época era visto de forma bastante negativa. Além disso, era pobre. Ser mulato e pobre, no Brasil oitocentista, que ainda vivia a escravidão, era algo que dificultava bem a vida.
Cedo, ainda menino, Joaquim perdeu a mãe. Alguns anos depois, o pai, Francisco, casou-se com Maria Inês da Silva. Pouco tempo depois, Francisco também faleceu, deixando o filho completamente órfão.
Maria Inês trabalhava em uma escola, o que permitia ao menino Joaquim frequentar algumas aulas, já que, durante a infância, tinha podido estudar muito pouco formalmente.
O menino ajudava a madrasta vendendo doces na rua. Sempre que podia, dava um jeito de aprender alguma coisa. Aprendeu a ler com a madrinha, estudou latim com o padre da paróquia e francês com o padeiro.
À luz de velas, lia todos os livros que lhe caíam às mãos. Já adolescente, conseguiu um emprego com Francisco de Paula Brito, dono da livraria, do jornal e da tipografia da cidade. Nesse ambiente, pode ampliar suas possibilidades como leitor e também como escritor.
No dia 12 de fevereiro de 1855, publicou seu primeiro poema no jornal A Marmota Fluminense, pertencente a Paula Brito. Assim começava uma carreira literária brilhante.
Ela
Seus olhos que brilham tanto,
Que prendem tão doce encanto,
Que prendem um casto amor
Onde com rara beleza,
Se esmerou a natureza
Com meiguice e com primor.
Suas faces purpurinas
De rubras cores divinas
De mago brilho e condão;
Meigas faces que harmonia
Inspira em doce poesia
Ao meu terno coração!
Sua boca meiga e breve,
Onde um sorriso de leve
Com doçura se desliza,
Ornando purpúrea cor,
Celestes lábios de amor
Que com neve se harmoniza.
Com sua boca mimosa
Solta voz harmoniosa
Que inspira ardente paixão,
Dos lábios de Querubim
Eu quisera ouvir um — sim —
Pr’a alívio do coração!
Vem, ó anjo de candura,
Fazer a dita, a ventura
De minh’alma, sem vigor;
Donzela, vem dar-lhe alento,
Faz-lhe gozar teu portento,
“Dá-lhe um suspiro de amor!”
Trabalhando na livraria, fez muitas amizades com literatos, estudiosos e escritores. Lá, o assunto principal era a poesia. E, assim, gradativamente, o menino Joaquim foi se tornando o escritor Machado de Assis.
Em 1856, Machadinho, como era conhecido, entrou para a imprensa oficial como aprendiz de tipógrafo e teve acesso à enorme biblioteca de seu empregador. Isso foi essencial para a formação de sua carreira.

Machado aprendeu inglês e alemão sozinho e leu os grandes clássicos da literatura universal. Essas leituras tornaram-se referências para suas obras e colaboraram para a genialidade de seus romances e contos da maturidade.
Com vinte anos, Machado de Assis já frequentava os círculos literários e jornalísticos do Rio de Janeiro, capital política e cultural do Império. Em 1864, publicou seu primeiro livro, Crisálidas, uma coletânea de poemas, que dedicou aos pais.
Em 1867, o Imperador D. Pedro II concedeu a Machado o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa por serviços prestados à literatura nacional. Neste mesmo ano, foi nomeado para um cargo no Diário Oficial, tornando-se funcionário público.
Casou-se, aos trinta anos, com Carolina Xavier de Novaes, portuguesa, sua companheira de toda a vida. Carolina foi sua revisora e maior apoiadora na elaboração de suas obras.
Machado sofria de epilepsia, condição que dificultava muitas vezes o seu trabalho. Também nesse aspecto, Carolina foi de extrema importância, estando ao seu lado todo o tempo.

A literatura machadiana apresenta duas fases. A primeira, romântica, apresenta romances de destaque como A mão e a luva e Helena. A segunda, realista, é a de maior relevância, com obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba.
Além de romancista, Machado foi contista, cronista, dramaturgo, poeta, crítico literário e jornalista. Seu estilo irônico, sutil, introspectivo e sofisticado influenciou profundamente a literatura brasileira.
Machado viveu os últimos anos da escravidão e da monarquia. O Brasil era um país escravocrata, agrário e patriarcal. Para sobreviver e ser influente, nessa sociedade, foi preciso que ele se mantivesse, de certa forma, dentro de uma neutralidade.
Em sua literatura, Machado nunca escreveu explicitamente sobre sua condição racial ou usou sua história pessoal como tema, ainda que criticasse o comportamente e a visão de mundo da elite através de personagens como Brás Cubas e Bento Santiago.
Ou a hipocrisia social e o desejo de ascensão de classe através de Rubião e do casal Sofia e Cristiano Palha. Assim, fazia crítica social de forma indireta, evitando conflitos com a elite branca e sendo aceito em seus círculos, ainda que com reservas, devido a sua cor.
Características da obra machadiana
Machado de Assis é um escritor único em nossa literatura. Embora sua obra seja colocada dentro dos estilos literários do século XIX, época em que viveu o escritor, sua literatura vai muito além desses estilos, combinando com eles e superando-os também.
São características de suas obras:
- a ironia sutil;
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
- o aprofundamento psicológico;
“(…) A alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às ave-marias, tocariam flores e… (…) Depois de estremecer, tivesse o ímpeto de atirar-me pelo portão a fora, descer o resto da ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança.”
(Dom Casmurro)
- crítica ao egoísmo, à falsidade, à vaidade, ao materialismo;
“gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí, vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.”
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
- pessimismo;
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
- humor;
“[…] Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa[…] – Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais. Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.”
(O homem célebre)
- diálogo com o leitor;
“Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade;advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.”
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
- metalinguagem;
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.”
(Memórias póstumas de Brás Cubas)
- temas como: o adultério feminino (ex.: Dom Casmurro, A cartomante), a loucura (ex.: Quincas Borba, O Alienista), a contradição entre a aparência e a essência (ex.: O homem célebre, A teoria do medalhão, O espelho).
“- Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida.”
(A teoria do medalhão)
Branqueamento literário e intelectual
Como já dissemos, Machado de Assis viveu em um meio social elitista, racista e escravocrata. Para sobreviver nesse meio e circular entre literatos e figuras públicas, foi necessário manter-se em uma posição de neutralidade.
Por ser filho de pai negro e mãe branca, Machado era visto como “mestiço”, ou “mulato”. Essas palavras tinham um peso bastante negativo. Ainda assim, um homem “mestiço” era aceito um pouco melhor do que um homem negro.

A genialidade e as amizades de Machado de Assis o colocavam em uma posição de tolerância, permitindo-lhe, inclusive, ocupar cargos públicos importantes. Assim, ainda que frequentasse os ambientes da elite carioca, nunca pertenceu realmente a eles.
“Seu artigo no Jornal do Comércio está belo. Mas esta frase causou-me arrepio: mulato. Eu, pelo menos, só vi em Machado de Assis o grego”.
Joaquim Nabuco
O trecho acima é parte de uma carta, escrita por Joaquim Nabuco, amigo de Machado de Assis. A carta era endereçada ao crítico literário José Veríssimo, que havia usado a palavra “mulato” para se referir a Machado em um artigo em sua homenagem, em 1908, ocasião de sua morte.
O termo “mulato” era usado na época para designar pessoas mestiças, especialmente aquelas nascidas da união entre pessoas brancas e negras. E, diante do corpo, da história e da origem de Machado, dizer “mulato” significava quebrar o pacto que mantinha o escritor em um pedestal universal, sem cor, ou melhor, embranquecido.
Para que Machado de Assis ocupasse o lugar de maior escritor da literatura brasileira era preciso apagar sua origem negra, colocando-o em um espaço de neutralidade. Afinal, naquele Brasil, não era possível que um homem negro, ou mesmo “mulato”, fosse o presidente da Academia Brasileira de Letras e mestre unânime das Letras no país.
Infelizmente, no Brasil, ainda hoje, a aparência e a origem racial caminham juntas. Quanto mais o corpo carrega sinais visíveis de uma ancestralidade negra ou indígena, como a cor da pele, o cabelo, os traços do rosto, maior é a rejeição e a exclusão social.
É por isso que, no passado, pessoas consideradas “mulatas” sofriam racismo mas tinham alguma possibilidade de aceitação social. Ainda assim, o termo rebaixava essas pessoas a um lugar de inferioridade, só suplantado em raras exceções, como foi com Machado de Assis.
Em nosso país, a cor da pele funcionava, e ainda funciona, como marcador visual de pertencimento ou exclusão. De acordo com o Estatuto de Igualdade Racial e os critérios do IBGE, a população negra no Brasil é composta por todas as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas.
Essa categoria reflete a complexa formação do país. A chamada mistura de raças, no Brasil, nunca foi sinônimo de harmonia, mas, sim, de relações marcadas por assimetrias de poder, violência e exclusão.
Ser pardo, nesse contexto, não é ocupar um espaço neutro seguro, mas, sim, um lugar de ambiguidade, onde a cor da pele e os traços físicos definem como o sujeito será percebido e tratado socialmente.
E a questão do pardo revela as contradições de um país que se formou através da mestiçagem, mas ainda hierarquiza vidas a partir da aparência. A maneira como o corpo é lido determina se essa pessoa será tratada como branca, como negra, ou como algo intermediário e ambíguo.
Essa leitura define não apenas como essa pessoa será percebida mas também quais oportunidades lhes serão dadas. Logo, ser pardo não garante proteção contra o racismo, mas revela como a desigualdade racial opera de maneira sutil e estratificada.
Machado de Assis, durante muito tempo, foi visto como um escritor branco. Apesar de, em sua época, ter sido percebido como um homem “mulato”, hoje chamado de pardo, passou para a história tendo sua origem, em fotos e documentos, apagada.
Suas fotografias foram retocadas para suavizar os traços negros. E seus registros oficiais, como sua certidão de óbito, o classificaram como branco. Isso se deve a um período de nossa história que via a mestiçagem como sinônimo de degeneração e atraso social.
De acordo com a visão da época, o Brasil só se desenvolveria se se aproximasse do padrão europeu e a mestiçagem, que nos fazia diferenciava, era sinônimo de atraso. É o momento da Belle Époque, ou imitação da vida francesa, percebida ainda hoje na arquitetura de prédios do centro do Rio de Janeiro.
Assim como esse centro da cidade foi reformado, no início do século XX, para parecer-se com a cidade de Paris, as elites importavam cultura e hábitos europeus com o desejo de modernizar-se.
Nesse sonho dourado, não cabia a figura do negro e do mestiço, a não ser em posições subalternas. Durante décadas, Machado de Assis figurou para a história e nos livros didáticos como um homem branco.

Somente no final do século XX e início do XXI, pesquisadores, escritores e movimentos negros buscaram resgatar a sua verdadeira origem, reconhecendo-o como um homem de ascendência negra, que se destacou em um país profundamente racista.
E que, por isso, teve sua identidade diluída para caber nos moldes estabelecidos.
Foi apenas em 2018 que uma fotografia inédita de Machado de Assis veio à tona. Na imagem, o autor aparece de pé em um jardim e seus traços negros e pele escura são visíveis.
Após estudos feitos sobre essa fotografia, que demonstra claramente a cor e os traços de Machado, foi possível afirmar que as fotos oficiais do escritor foram alteradas para esconder sua origem.
O embranquecimento da imagem de Machado de Assis é resultado de uma apropriação simbólica de sua memória por uma sociedade que precisava enxergá-lo como branco para validá-lo como ícone nacional.
Esse apagamento racial serviu a um projeto de país que via a população negra apenas como um vestígio incômodo de um passado escravocrata, algo a ser silenciado ou esquecido.
O talento de Machado de Assis o elevou. Seu corpo, no entanto, foi constantemente redesenhado para caber em um ideal branco de intelectualidade e civilidade.
O branqueamento de Machado não é somente uma questão relacionada a sua biografia. Ela se estende a algo muito maior. Fala de uma sociedade que ainda estratifica vidas a partir da aparência e da cor da pele.
Resgatar a negritude do escritor é um ato de justiça histórica e também um gesto político de denúncia contra o apagamento, de afirmação de pertencimento e de ruptura com a lógica que só valoriza corpos intelectualizados quando eles cabem nos moldes da branquitude.
Conclusão
Machado de Assis é, sem dúvida, o maior escritor de nossa literatura. Fundador da Academia Brasileira de Letras, considerado um gênio das letras, admirado e respeitado em vida por sua obra. Teve o reconhecimento que a muitos outros escritores de grande talento só chega depois da morte.
Sua vida é tão exemplar quanto sua obra. De origem humilde, descendente de escravizados, mestiço, pobre, órfão, epilético, gago e míope, tornou-se um escritor, jornalista e poeta aclamado e homenageado com títulos, cargos públicos e honrarias.
Suas obras retratam a sociedade brasileira com grande lucidez e propriedade e são atualíssimas em suas críticas. Também podemos nos encontrar no comportamento e aspirações de suas personagens, tamanha a humanidade que elas apresentam.
E, ainda que sua origem e cor tenham sido apagadas por um determinado tempo de nossa história, Machado permanece hoje como ícone de brasilidade e de representação de um povo nascido da miscigenação e da ambiguidade, nossas marcas registradas.
P.S.: Este artigo foi escrito, em parte, tendo como base as informações de uma excelente apreciação da história de Machado de Assis e de seu branqueamento contida no vídeo abaixo. Caso o leitor queira mais detalhes sobre os temas aqui abordados, é de grande valia assisti-lo.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
