José Saramago foi agraciado, em 1998, com o Prêmio Nobel de Literatura. A Academia Sueca justificou sua escolha com estas palavras: sua obra revela “imaginação parabolística e lucidez que nos permitem apreender uma realidade ilusória e constantemente recriada”.
Esse reconhecimento representou um momento simbólico: não só validou internacionalmente o autor português, mas também consolidou a língua portuguesa como veículo para produções literárias de relevância universal.
A partir desse marco, é possível ver como sua literatura se torna uma ponte entre o particular e o global, entre o local e o universal, sempre com a força de uma escrita que questiona e encanta.
Quem foi José Saramago?
José Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, no Ribatejo, em Portugal. Filho de camponeses, viveu desde cedo em um ambiente humilde, no qual aprendeu o valor da leitura como escape e referência para o mundo.
Durante a juventude, mudou-se para Lisboa, onde trabalhou em ofícios diversos — mecânico, funcionário administrativo, tradutor — até conseguir dedicar-se mais intensamente à literatura e ao jornalismo.
Embora tenha publicado seu primeiro romance, Terra do Pecado (aparecido em 1947, posteriormente editado como A Viúva), sua projeção literária verdadeira só veio depois de muitos anos.
Nos anos de regime autoritário em Portugal (sob o Estado Novo), Saramago foi um intelectual engajado, crítico das desigualdades e das limitações da liberdade. Ao longo das décadas, enfrentou censuras, controvérsias religiosas e resistiu ao conformismo político.
Após receber o Nobel, decidiu fixar residência em Lanzarote, nas Ilhas Canárias — onde viveu até sua morte, em 18 de junho de 2010. Lá criou escrituras finais, seu diário literário, e dedicou-se a projetos culturais e de memória.
Ao longo da vida, Saramago escreveu mais de quarenta títulos entre romances, ensaios, poesia, teatro e crônicas.
O Prêmio Nobel de Literatura: o que é e por que importa
O Prêmio Nobel de Literatura foi instituído por Alfred Nobel em seu testamento e tem sido concedido anualmente (desde 1901) pela Academia Sueca a um escritor cuja obra, segundo o comitê, representa uma contribuição notável para a literatura e para o progresso cultural da humanidade.
Ganhar esse prêmio não significa apenas reconhecimento individual, mas também visibilidade global para o idioma e o país de origem do autor.
No caso de Saramago, o Nobel não só lhe conferiu prestígio internacional, mas também enviou um recado simbólico: que a língua portuguesa pode ser uma voz literária de alcance universal.
Além disso, o Nobel costuma provocar um aumento do interesse editorial, tradução mais ampla para outros idiomas, e um redirecionamento da atenção crítica para a obra do laureado — abrindo portas para que leitores de outros países descubram seus livros.
A obra de Saramago: estilo, legado e principais títulos
- Estilo literário e temas recorrentes
- A escrita de José Saramago é marcada por:
- Longos períodos, com pontuação mínima ou deslocada, diálogos internos intercalados sem marcações explícitas — o que exige do leitor uma participação ativa no fluxo de consciência;
- Mistura entre o real e o fantástico — por meio de metáforas, hipóteses “impossíveis” e parábolas que revelam profundas verdades humanas;
- Ironia, humor ácido e crítica social — sempre com olhar atento às desigualdades, à política, à religião e à condição humana;
- Narradores em terceira pessoa que às vezes parecem saber demais, aproximando-se do ensaio filosófico.
Esses elementos contribuem para que seus romances sejam mais do que narrativas; funcionam como textos meditativos, onde a história leva o leitor a reflexões existenciais.
Principais obras de José Saramago
Memorial do Convento (1982)
Ambientado no século XVIII, durante o reinado de D. João V, o romance entrelaça a história da construção do Convento de Mafra com as vidas de personagens inesquecíveis: Baltasar, um ex-soldado deficiente; Blimunda, mulher com poderes visionários; e o padre Bartolomeu de Gusmão, inventor sonhador.
A obra combate a dicotomia entre grandiosidade oficial e sofrimento íntimo. Ao narrar a construção monumental do convento, Saramago coloca o leitor para escutar os “silenciosos” da história: trabalhadores, mulheres, anônimos.
Essa inversão de perspectiva é uma marca do romance histórico reinterpretado por ele.
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
Neste romance, Saramago imagina os meses finais da existência de Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Reis retorna a Lisboa no fim de 1935, após 16 anos vivendo no Brasil, e passa a observar, viver e dialogar — inclusive com o fantasma de Pessoa — sob o peso da angústia política e existencial.
Lisboa, em seus becos, hotéis e repúblicas, torna-se palco de tensões: o fascismo que cresce, o mundo europeu prestes a mergulhar no caos, e o duelo entre memória e esquecimento.
A solidão e a nostalgia permeiam cada página. Quando Saramago disse que era um “livro sobre a solidão, sobre uma cidade triste, sobre um tempo triste”, ele sintetizou muito do clima deste romance.
A Jangada de Pedra (1986)
Com um ponto de partida fantástico, Saramago imagina que a Península Ibérica se desprende do resto da Europa e começa a flutuar pelo Oceano Atlântico.
Nesse movimento surreal, ele critica o isolamento histórico dos povos ibéricos, a relação entre Portugal e Espanha e as tentativas de “modernização forçada”.
Sob o pretexto de uma trama fantástica, o autor toca em temas de identidade nacional, linguagem, e as relações entre vizinhos que historicamente coexistem com tensões.
O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991)
Um dos livros mais polêmicos de Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo reconta a história bíblica a partir de uma perspectiva humanizada.
Cristo é apresentado como homem com dúvidas, medos, aflições, ao passo que o Deus narrador assume uma face questionável. A narrativa subverte passagens canônicas e introduz tensões entre fé e poder.
O livro gerou forte reação religiosa e política em Portugal, levou à recusa de sua candidatura a prêmios nacionais e contribuiu para que Saramago viesse a deixar o país. Mesmo assim, permaneceu como uma de suas obras mais poderosas e discutidas.
Ensaio sobre a cegueira (1995)
Neste romance emblemático, uma epidemia súbita de “cegueira branca” acomete uma cidade inteira.
Os doentes são confinados em quarentena num hospício abandonado, enquanto a esposa de um médico — que permanece visionária — tenta guiá-los e preservar o resquício de humanidade.
A narrativa expõe o colapso das instituições sociais, o desmoronar das normas éticas e a brutalidade que emerge do medo e da ruptura.
Ao mesmo tempo, mostra gestos de solidariedade em meio ao caos. A cegueira se transforma em metáfora da alienação moral que ameaça a civilização.
Todos os nomes (1997)
José, funcionário de um registro civil, descobre por acaso a ficha de uma mulher desconhecida. Inicia, então, uma busca obsessiva para reconstruir sua vida e identidade.
A investigação, contudo, o conduzirá por corredores burocráticos, registros perdidos e labirintos administrativos, enquanto ele questiona quem somos e o que deixamos registrado.
É uma obra sobre solidão, identidade e a impossibilidade de conhecer plenamente o outro — e mesmo a nós mesmos. A narrativa entrelaça o íntimo e o institucional, numa reflexão densa sobre memória e anonimato.
A Caverna (2000)
Inspirado no mito da caverna de Platão, este romance conta a história de Cipriano Algor, ceramista que vive num grande centro comercial chamado Centro, onde seus produtos são rejeitados.
Ao procurar novo espaço, ele descobre a ruptura da antiga comunidade e se vê confrontado com o vazio da modernidade.
Saramago explora a alienação do trabalho, a homogeneização dos valores consumistas e a perda da cultura do artesanal. A dicotomia entre “luz artificial” e “escuridão humana” torna-se metáfora da modernidade que nos distancia da essência criadora.
O Homem Duplicado (2002)
Tertuliano Máximo Afonso, professor de história, descobre um ator que é seu sósia perfeito. Intrigado com a duplicação da própria identidade, ele mergulha numa busca obsessiva para cruzar com o outro, questionando o que nos define como sujeitos.
Saramago trata de modo brilhante temas como identidade, acaso, destino e as fissuras da individualidade em um mundo saturado de cópias e representações.
Ensaio sobre a lucidez (2004)
Continuação simbólica de Ensaio sobre a cegueira, aqui Saramago imagina uma cidade em que, numa eleição, a maioria dos eleitores decide votar em branco. O governo, alarmado, responde com repressão.
A obra é uma alegoria à traição da democracia, ao medo institucional e à fragilidade da cidadania — um alerta sobre o manejo do poder e o papel dos cidadãos no tecido social.
As intermitências da morte (2005)
E se a morte decidisse simplesmente “não atuar” por um tempo?
Neste país fictício, as pessoas deixam de morrer. O caos se instala: doentes incuráveis permanecem vivos indefinidamente, funerárias entram em colapso, idosos vivem em espera infinita e há crises institucionais.
A narrativa brinca com paradoxos e traz reflexões sobre vida, tempo, sentido e a inevitabilidade da morte. Saramago insinua que a morte — por mais sombria que seja — dá sentido ao viver.
A Viagem do Elefante (2008)
Baseado em um episódio real do século XVI, o romance narra a longa jornada do elefante Salomão, enviado como presente do Rei Manuel I ao imperador Maximiliano da Áustria.
Enquanto perambula pelas cortes europeias, Salomão torna-se testemunha de intrigas, vaidades e absurdos humanos.
A obra reflete sobre o poder simbólico dos animais, a grandeza simbólica dos reinos e a pequenez das maquinações humanas.
Caim (2009)
Esse romance controverso revisita episódios bíblicos — especialmente a história de Caim e Abel — sob a ótica crítica de um protagonista que questiona Deus, o destino e o sofrimento humano.
Saramago propõe um confronto literário com a teologia tradicional, provocando desconforto e reflexão ética.
Conclusão
José Saramago foi mais do que um autor reconhecido; ele se tornou um símbolo da literatura em português que alcançou o topo do reconhecimento mundial.
Seu Nobel de Literatura — recebido em 1998 — não só confirmou a força de sua voz, mas também conferiu visibilidade internacional à literatura de língua portuguesa.
Nenhum outro escritor lusófono alcançou, até hoje, essa honra. E essa singularidade reforça a importância de sua obra: não como exceção, mas como estímulo para que novos escritores lusófonos persigam vozes autênticas, complexas e universais.
Em cada romance de Saramago reside o apelo ao leitor para que não se acomode, para que não aceite verdades prontas. Ele nos lembra que a literatura é lugar de inquietação, de interrogação e de humanidade.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
