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Trovadorismo: contexto histórico, características, cantigas

Trovadorismo, a arte literária do período medieval

O Trovadorismo é um movimento artístico que tem suas origens no sul da França no final do século XI. O nome desse estilo vem das trovas, ou versos, produzidas pelos poetas da época, os trovadores, para serem acompanhadas de melodia. Essas composições, conhecidas como cantigas, foram a principal manifestação do período trovadoresco, que durou 150 anos, entre os séculos XII e XIV.

Trovadorismo, movimento artístico europeu ocorrido entre os séculos XII a XIV.

Contexto histórico do Trovadorismo em Portugal

O Trovadorismo ocorreu em Portugal, aproximadamente, entre os anos de 1189 e 1418. Nesse período, é preciso considerar dois fatores importantes: o Feudalismo e o Teocentrismo. Esses dois movimentos tiveram grande influência na poesia produzida na época, conforme veremos mais adiante.

O Feudalismo foi um sistema político e econômico que concentrou os indivíduos em grandes propriedades de terra isoladas por altos muros. Os muros se deviam à necessidade de proteção, uma vez que as guerras eram constantes, e também demarcavam o território pertencente a um determinado senhor.

No trovadorismo, o sistema político e econõmico ficou conhecido como feudalismo.
Feudalismo: sistema político e econômico do período medieval.

Os feudos, como eram chamadas as propriedades, eram dados pelos reis a outros nobres que lhe deviam total obediência e fidelidade, era a chamada relação de vassalagem. Esses nobres, por sua vez, comandavam as terras e tinham total poder sobre todos que a habitavam, sendo seus senhores.

O Teocentrismo, Deus no centro da vida, se refere ao poder conferido à Igreja Católica como representante de Deus na Terra. O homem medieval acreditava que estava completamente submisso à vontade de Deus e aceitava o seu destino. Nesse período, não havia ascensão de classe e os indíviduos já tinham o caminho de suas vidas traçado desde seu nascimento.

Características do Trovadorismo

O Trovadorismo caracterizou-se por uma forte religiosidade e obscurantismo. A poesia era produzida para ser cantada com o acompanhamento musical. A mulher torna-se a Musa inspiradora do poeta, o trovador, e também a causa de todo o seu sofrimento. Predomina o lirismo das cantigas amorosas, em que o tema maior é o Amor. Outros temas importantes também são a saudade e a crítica social.

O cavaleiro fazia a corte à dama e lhe rendia total fidelidade.

A principal produção literária do período foram as cantigas, classificadas em líricas e satíricas. Mas também são produções relevantes do período as hagiografias, relatos das vidas dos santos da Igreja Católia, e as novelas de cavalaria, narrativas sobre as aventuras dos cavaleiros medievais.

Cantigas trovadorescas

As cantigas do Trovadorismo eram versos compostos pelos poetas trovadores que eram acompanhados pela melodia dos alaúdes, flautas e outros instrumentos musicais. Foram dois os tipos de cantigas: as líricas e as satíricas. Essas, por sua vez, se subdividem em outras duas categorias, cada uma. Vejamos.

O bandolim era um dos instrumentos comumente usados pelos trovadores para entoar as cantigas.
O bandolim era um dos instrumentos usados pelos trovadores.

Cantigas líricas

Os trovadores produziram dois tipos de cantigas, basicamente. Um voltado para a Corte e seus costumes, a cantiga de amor. E outro voltado para o povo e a sua vida cotidiana, a cantiga de amigo.

Cantiga de amor

As cantigas de amor eram destinadas a enaltecer a beleza e o caráter de uma dama da Corte, uma mulher nobre e casada. O amor era, portanto, impossível e gerava a dor e o lamento próprios dessas cantigas.

Cantiga da Ribeirinha

No mundo ninguém se assemelha a mim
Enquanto a vida continuar como vai,
Porque morro por vós e – ai! –
Minha senhora alva e de pele rosadas,
Quereis que vos retrate
Quando eu vos vi sem manto.
Maldito seja o dia em que me levantei
E então não vos vi feia!

E minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me ocorreu muito mal!
E a vós, filha de Dom Paio
Moniz, parece-vos bem
Que me presenteeis com uma guarvaia,
Pois eu, minha senhora, como presente,
Nunca de vós recebera algo,
Mesmo que de ínfimo valor.

(Paio Soares de Taveirós)

Primeira composição de amor da língua portuguesa, a Cantiga da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós, é dedicada a d. Maria Pais Ribeiro, amante de Sancho I, rei de Portugal à época. A cantiga data de 1189 ou 1198. A data não é precisa, mas marca o início do Trovadorismo português.

Observe a seguir todas as características da cantiga de amor:

  • eu-lírico masculino, um homem apaixonado por uma dama inacessível;
  • o objeto de amor é uma dama casada que sequer percebe os sentimentos do eu-lírico;
  • vassalagem amorosa, a mulher amada é chamada de “minha senhora” e é a dona do coração do trovador que lhe rende total adoração e fidelidade;
  • coita amorosa, o sofrimento vivido pelo eu da cantiga que lamenta constantemente a infelicidade de ter se apaixonado pela dama impossível;
  • amor não correspondido, platônico;
  • linguagem elaborada em galego-português.
A mulher era a musa inspiradora do trovador, o poeta do Trovadorismo.

As cantigas de amor sobrevivem ainda hoje nas canções românticas, em que frequentemente a mulher e o amor são enaltecidos, sendo ela muitas vezes a dama distante e inalcançável e o sentimento amoroso é causa de dor e lamento.

Chico Buarque é o que podemos chamar de trovador dos tempos modernos.
Chico Buarque, um trovador dos tempos de hoje.

Veja alguns exemplos:

Anna Julia

Quem te vê passar assim por mim

Não sabe o que é sofrer

Ter que ver você, assim, sempre tão linda

Contemplar o sol do teu olhar, perder você no ar

Na certeza de um amor

Me achar um nada

Pois sem ter seu carinho

Eu me sinto sozinho

Eu me afogo em solidão

Oh, Anna Julia

Oh, Anna Julia

(…)

(Los Hermanos)

As vitrines

Eu te vejo sumir por aíTe avisei que a cidade era um vãoDá tua mão, olha prá mimNão faz assim, não vai lá, nãoOs letreiros a te colorirEmbaraçam a minha visãoEu te vi suspirar de afliçãoE sair da sessão frouxa de rirJá te vejo brincando gostando de serTua sombra a se multiplicarNos teus olhos também posso verAs vitrines te vendo passarNa galeria, cada clarãoÉ como um dia depois de outro diaAbrindo um salãoPassas em exposiçãoPassas sem ver teu vigiaCatando a poesiaQue entornas no chão

(…)

(Chico Buarque)

Cantiga de amigo

Nas cantigas de amigo, encontramos uma mulher que chora a ausência do homem amado. Era comum na época que os homens estivessem fora de casa devido às longas viagens por mar ou a batalhas frequentes. A mulher dessas cantigas pertence ao povo, assim como o seu amado, e ficava só por longos períodos, portanto.

Leia um exemplo desse tipo de cantiga abaixo em galogo-português.

Ai, flores, ai, flores do verde pino,

Se sabedes novas do meu amigo?

ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,

Se sabedes novas do meu amado?

Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,

Aquel que mentiu do que pos comigo?

Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,

Aquel que mentiu do que mi a jurado?

Ai, Deus, e u é?

(…)

A saudade do amado e a preocupação com o seu retorno são temas constantes das cantigas de amigo. É possível pensar em causas mais práticas para o lamento que elas trazem do que simplesmente o sentimento amoroso. A mulher, no período medieval, dependia do homem econômica e socialmente. Portanto, a falta desse homem era para ela também a consequente e provável alienação social.

Veja, a seguir, as características principais das cantigas de amigo:

  • eu-lírico feminino, a cantiga era escrita pelo trovador, mas a voz dos versos é de uma mulher;
  • a mulher, protagonista da cantiga, pertence ao povo, à classe pobre;
  • o objeto amoroso a quem os versos se referem é um homem também do povo, provavelmente um soldado ou marinheiro;
  • o tema das cantigas é a saudade, a moça chora a ausência do homem amado;
  • esse homem é chamado de “amigo”, que era sinônimo na época de amante, namorado ou marido, por isso o nome dado a esse tipo de composição ser cantiga de amigo;
  • a coita amorosa é marcada nessas cantigas pela saudade e pela preocupação com o homem ausente;
  • o interlocutor dos versos é, em geral, a natureza ao redor da mulher, como a fonte onde vai buscar água ou o mar que banha a cidade onde mora;
  • a linguagem das cantigas de amigo tem menor complexidade e é marcada pelo paralelismo (versos de mesmo significado, quase iguais, na mesma posição dentro de cada estrofe) e a repetição integral de versos ao final das estrofes.

Também a cantiga de amigo sobrevive nas canções de hoje, principalmente quando estas abordam o abandono e a dor da ausência do ser amado. Observe a seguir alguns exemplos.

Sozinha

As vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordada
Juntando!
O antes, o agora e o depois

Por que você me deixa tão solta?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinha

Não sou nem quero ser a sua dona
É que um carinho as vezes cai bem!
Eu tenho meus desejos e planos
Secretos!
Só abro pra você mais ninguém

Por que você me esquece e some?
E se eu me interessar por alguém?
E se ele de repente me ganha?

(…)

(Sandra de Sá)

Escrita por Peninha, a canção Sozinha fez sucesso na voz de Sandra de Sá, com eu-lírico feminino. Depois, viralizou na interpreção de Caetano Veloso, no masculino. Aqui nos interessa a versão de Sandra de Sá, porque assim temos a proximidade com o que era relatado nas cantigas de amigo.

Atrás da porta

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei
Sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama

Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua

(Chico Buarque)

A canção Atrás da porta foi composta por Chico Buarque e fez sucesso na voz de Elis Regina. No caso dessa canção, nunca houve uma versão no masculino. Mesmo quando cantada por Chico, o eu-lírico é feminino. Assim, a semelhança com as cantigas de amigo, em Atrás da porta, é maior.

Cantigas satíricas

As cantigas satíricas têm um papel bastante importante na observação dos costumes e da visão de mundo da época. Como acontece com a sátira, de forma geral, elas retrataram situações do cotidiano medieval e o modo como as pessoas reagiam a determinados comportamentos sociais.

Leia abaixo um exemplo de cantiga satírica.

Ai dona fea! Fostes-vos queixar
Porque vos nunca louv’ en meu trobar
Mais ora quero fazer un cantar
En que vos loarei toda via
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!

Dona fea! Se Deus me pardon!
E pois avedes tan gran coraçon
Que vos eu loe, en esta razon,
Vos quero ja loar toda via;
E vedes qual será a loaçon:
Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
En meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora ja un bon cantar farei
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!

(…)

A sátira tem a intenção de criticar a sociedade ou um grupo social através do humor e da ironia. No caso das cantigas medievais satíricas, isso se deu através de dois tipos de composição: a cantiga de escárnio e a cantiga de maldizer.

Cantiga de escárnio

As cantigas de escárnio faziam uma crítica velada a determinados indivíduos da sociedade, ou seja, criticavam a pessoa sem lhe revelar o nome. No entanto, era fácil perceber de quem se tratava pelos indícios do que era narrado. Elas usavam bastante da ironia e de um humor sutil, o que as tornava bastante interessantes.

Cantiga de maldizer

Já as cantigas de maldizer traziam a crítica direta, mencionando o nome da pessoa criticada. Também apresentavam uma linguagem chula, com palavrões e expressões grotescas. A graça estava exatamente nisso. Chamava-se a atenção para o que se queria criticar através dessa linguagem baixa.

As cantigas satíricas também estão presentes nas canções atuais, em músicas que criticam os problemas da sociedade contemporânea ou determinados comportamentos e tipos sociais. Veja abaixo uma letra escrita por Gabriel o Pensador que demonstra os ecos das cantigas satíricas hoje.

Lôraburra

Existem mulheres que são uma beleza

Mas quando abrem a boca

Humm que tristeza!

Não não é o seu hálito que apodrece o ar

O problema é o que elas falam que não dá pra aguentar

Nada na cabeça

Personalidade fraca

Tem a feminilidade e a sensualidade de uma vaca

Produzidas com roupinhas da estação

Que viram no anúncio da televisão

Milhões de pessoas transitam pelas ruas

Mas conhecemos facilmente esse tipo de perua

Bundinha empinada pra mostrar que é bonita

E a cabeça parafinada pra ficar igual paquita

Lôraburra!

(…)

(Gabriel o Pensador)

Novelas de cavalaria

Vale também comentarmos a produção das novelas de cavalaria. Relatos sobre as aventuras e os feitos grandiosos dos cavaleiros medievais. Esses textos são importantes porque ajudaram a moldar a imagem heróica de muitos progagonistas de filmes, novelas e séries do cinema e da tv hoje.

As novelas de cavalaria são narrativas que têm como protagonistas nobres cavaleiros que saíam de suas terras para defender a religião, a família, a terra e o amor. Os protagonistas das novelas eram verdadeiros heróis no sentido que entendemos essa palavra: corajosos, altruístas, generosos e leais. Tinham um código de honra rígido e eram capazes de dar a vida por ele.

Tristão e Isolda é uma lenda do período medieval que conta a história de amor impossível entre dois jovens.
Tristão e Isolda é uma lenda medieval sobre o amor impossível entre dois jovens.

As cantigas de gesta são os primeiros registros das aventuras dos cavaleiros medievais. Elas relatam as viagens por terras inóspitas do Oriente, batalhas sangrentas, disputas nas gestas (o esporte dos cavaleiros), mas também os casos de amor, o esforço dos cavaleiros para se manterem castos, a fé e a lealdade.

São novelas famosas até hoje: A Demanda do Santo Graal, Amadis de Gaula, O Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda. Essas histórias inspiraram poemas, canções, narrativas posteriores, filmes, novelas e séries.

Conclusão

Como vimos, o Trovadorismo é um estilo da arte bastante interessante e ainda muito presente em nossas produções culturais hoje. Os trovadores produziram obras que influenciaram a poeisa e o romance românticos do século XIX. Esses, por sua vez, são fortes influências da cultura de massa, em produções bastante populares e de grande sucesso entre nós.

Devemos aos trovadores ideais como: o Amor sublime e redentor; a mulher como Musa inspiradora da arte; o Amor impossível; o sofrimento e o desejo de Morte por amor; e, de certa forma, até mesmo o triângulo amoroso tão constante das obras românticas, já que o trovador se apresentava como alguém apaixonado por uma mulher casada.

Toda vez que assistimos a um show em um parque de exposições, ou mesmo em uma casa de show, em que cantamos e dançamos festivamente as canções junto com o artista, estamos vivenciando experiências próximas das que os nossos antepassados viveram ao cantar e dançar as cantigas medievais entoadas pelo alaúde de um trovador medieval.

Leia aqui sobre o livro Estranherismo, de Zack Magiezi, poesia contemporânea que faz lembrar bastante os poetas trovadores.

1 comentário em “Trovadorismo: contexto histórico, características, cantigas”

  1. Pingback: Estranherismo, de Zack Magiezi: resenha - Literaria26

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