Senhora é uma das obras mais famosos do escritor cearence José de Alencar. Esse romance foi publicado em 1875, período em vigorava o Romantismo no Brasil.
Essa é uma obra curiosa que chama a atenção do leitor por sua temática: uma bela mulher que decide comprar um marido para vingar-se desse dele por tê-la abandonado no passado.
Vejamos, então, com detalhes a história narrada em Senhora. Mas, antes, é importante considerar o contexto em que esse romance foi escrito e um pouco da vida de seu autor, o escritor José de Alencar.
Contexto histórico de Senhora
Senhora é uma obra que pertence ao Romantismo brasileiro. Publicada em 1875, reflete os costumes da época, em especial, da sociedade burguesa carioca.
O Brasil vivia neste momento o Segundo Reinado, sob o governo de D. Pedro II. O regime monárquico se consolidava e o país passava por importantes transformações políticas e econômicas.
A economia cafeeira expandia-se e chegava ao Brasil a primeira leva de imigrantes europeus. No entanto, era um país ainda escravocrata e, por isso, intensificavam-se as discussões abolicionistas.
O café dominava a economia brasileira, especialmente no Sudeste, impulsionando o desenvolvimento de ferrovias e a modernização do país. A mão de obra, embora em sua maioria escrava, começava a ser substituída pelo trabalho dos imigrantes.
A questão abolicionista ganhava força, com a crescente pressão por mudança e pelo fim da escravidão. O ideário republicano também se fortalecia e anunciava uma nova forma de governo.
A vida social mais intensa ocorria no Rio de Janeiro, capital do Brasil naquele momento, e centro econômico e político do período. É essa cidade que vivia já o princípio da Belle Époque (imitação da vida francesa) o cenário do romance de Alencar.

A história de amor e ódio entre Aurélia Camargo e Fernando Seixas. Uma história de paixão e vingança em meio a uma sociedade pautada no interesse financeiro e nas aparências.
Quem foi José de Alencar?
José Martiniano de Alencar nasceu em Fortaleza, em 1829.
Tornou-se o mais importante romancista do Romantismo brasileiro e é considerado o pai do romance no Brasil.
Os romances da época eram publicados em capítulos que chegavam ao público através dos jornais. Eram os chamados folhetins. As primeiras publicações eram traduções de romances europeus.
Ainda que tenham havido obras de relativa importância, como A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, é com as obras de Alencar que o romance brasileiro ganha realmente peso e valor.
Seus romances compõem uma espécie de painel histórico-social do Brasil do momento, envolvendo o passado histórico, as origens indígenas e os costumes urbanos, principalmente na cidade do Rio de Janeiro.
José de Alencar pertencia a uma família de prestígio no Nordeste. Formou-se em Direito e veio morar no Rio de Janeiro, onde começou a exercer a advocacia. Com o passar dos anos, foi também jurista, parlamentar imperial, político, jornalista e escritor.
Foi amigo próximo de Machado de Assis e patrono da Academia Brasileira de Letras. Além de romancista, foi também dramaturgo, cronista e poeta. E retratou o Brasil de seu tempo de forma aguda e dinâmica.
José de Alencar faleceu em 1877, no Rio de Janeiro.
Enredo de Senhora
A obra é dividida em quatro partes que representam as etapas de uma negociação financeira: preço, quitação, posse e resgate. O tema da obra é o casamento por interesse e as relações pautadas nos jogos de interesse e nas aparências.
Senhora é um romance urbano e de costumes, ou seja, o cenário é a cidade do Rio de Janeiro e as ações das personagens e o seu modo de pensar retratam os costumes da sociedade da época.

O enredo de Senhora é alinear, começando pela entrada triunfal da protagonista, Aurélia Camargo, na sociedade carioca da época. No entanto, nos capítulos subsequentes, Alencar nos leva ao passado da moça para apresentar suas origens.
Preço
Na primeira parte do romance, entitulada Preço, somos apresentados à heroína da história, a jovem bela e rica chamada Aurélia Camargo.
“A moça trajava de verde. Ela tinha essas audácias só permitidas às mulheres realmente belas, de afrontar a monotonia de uma cor. Seu lindo rosto, o colo harmonioso e os braços torneados, desabrochavam dessa folhagem de seda, como lírios d’água levemente rosados pelos rubores da manhã”.
Aurélia é órfã e não tem parentes próximos. Sua companhia constante é D. Firmina, uma senhora que cuida para que a moça não esteja sozinha nos eventos e nos passeios públicos. Nessa época, as moças deviam estar sempre acompanhadas.
Tem também um tio, o sr. Lemos, que a representa nos negócios, uma vez que as mulheres não podiam responder legalmente por suas posses sem o aval de um homem.
Aurélia pede ao tio Lemos que arranje para ela um marido, que era o que a sociedade esperava de uma jovem bela e rica. Mas não é um marido qualquer, ela quer casar-se com Fernando Seixas.
Seixas é um bom vivant que gosta de viver entre a alta sociedade, ainda que não tenha dinheiro suficiente para isso. Endivida-se e, por isso, compromete-se em noivado com a jovem Adelaide, filha do banqueiro Tavares do Amaral.
Aurélia recomenda ao tio que proponha a Fernando um dote de 100 mil cruzeiros (quantia paga ao noivo pela família da noiva) para que este se case com ela. A quantia é o triplo da que receberia casando-se com Adelaide.
Mas há uma condição: Fernando só poderá saber e ver a noiva no dia do casamento. Ele aceita, pensando no dinheiro que lhe daria uma vida confortável e também ajudaria à mãe e às irmãs por quem era responsável.
“- Esquece que desses dezenove anos, dezoito os vivi na extrema pobreza e um no seio da riqueza para onde fui transportada de repente. Tenho as duas grandes lições do mundo; a da miséria e a da opulência. Conheci outrora o dinheiro como um tirano; hoje o conheço como um cativo submisso. Por conseguinte devo ser mais velha do que o senhor que nunca foi nem tão pobre, como eu fui, nem tão rico, como eu sou”.
Na dia do casamento, descobre que a noiva é Aurélia, mulher que ele havia abandonado para tornar-se noivo de Adelaide. Na época, Aurélia era pobre e o casamento com ela não lhe traria vantagens, embora ele a amasse.

Ela, na noite de núpcias, humilha Fernando, chamando-lhe interesseiro e revelando-lhe todo o seu plano de vingança. Declara sua intenção de castigá-lo por ter ofendido de forma tão imoral ao puro amor que lhe havia dedicado.
Quitação
Nesta parte, somos levados ao passado da protagonista e descobrimos que ela era uma moça pobre, humilde e boa de coração. Seus pais eram Emília e Pedro Camargo.
Emília era camareira e apaixonou-se por Pedro, um jovem estudando filho de um rico fazendeiro. Sem a aprovação do pai, Pedro se casa com Emília. E, dessa união, nasce a bela Aurélia.
Ela perde o pai e passa a viver em dificuldades com a mãe. É, nessa época, com dezoito anos, que Aurélia conhece Fernando. Os dois tornam-se namorados e apaixonados.
No entanto, como já vimos, Fernando a abandona, sem nada dizer, ao receber a proposta de casamento com Adelaide. Aurélia mergulha em uma grande tristeza, agravada ainda pela morte da mãe.
Aurélia, abalada pelo abandono e pelas perdas familiares, vê sua vida mudar de forma inesperada.
Seu avô materno, que a princípio havia renegado o casamento da filha Emília, morre deixando-lhe uma herança considerável. A jovem, de repente, passa de uma condição humilde para uma posição de grande prestígio na sociedade carioca.
Com a fortuna herdada, Aurélia se torna uma das moças mais cobiçadas da corte. Sua beleza e inteligência, somadas ao poder econômico, transformam-na em figura de destaque nos salões da cidade.
Porém, apesar de todos os pretendentes que se aproximam, ela guarda dentro de si a dor de ter o seu amor e devoção trocado por dinheiro.

É nesse momento que, movida por um misto de ressentimento e desejo de reparação, Aurélia pede ao tio Lemos que seja o seu intermediário em um casamento vantajoso — mas com uma condição inusitada: o noivo só conhecerá a noiva no altar.
“Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério, do preço de sua cotação no rol da moça; e longe de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial.”
E o escolhido é Fernando Seixas, justamente o homem que a havia abandonado. Dessa forma, Aurélia “quita” sua dor transformando o contrato de casamento em uma espécie de acerto de contas.
Posse
No momento em que Fernando descobre, já casado, que sua esposa é Aurélia, sua alegria inicial dá lugar a um turbilhão de emoções. Ele ainda a ama, mas precisa lidar com o peso da revelação: não foi escolhido por amor, mas comprado por cem mil cruzeiros.
Na noite de núpcias, Aurélia deixa claro que a relação será fria e distante. Ela declara que agora é “proprietária” de Fernando, o qual foi adquirido por meio do dote. Ela é sua “Senhora” e o casamento, portanto, não passa de uma transação financeira.
Aurélia e Fernando passam a viver sob o mesmo teto, mas como estranhos. Cada um dorme em seu quarto, e a convivência é marcada por sarcasmo e olhares de censura.
A moça, embora ainda apaixonada, usa sua fortuna como forma de manter Fernando preso e de fazê-lo sentir o mesmo desprezo que um dia lhe impôs.
“- Deve estranhar esta febre de divertimentos? disse ela ao marido. É uma febre, é; mas não tem perigo. Quero que o mundo me julgue feliz. O orgulho de ser invejada, talvez me console da humilhação de nunca ter sido amada. Ao menos gozarei de um aparato de ventura. No fim de contas, o que é tudo neste mundo senão uma ilusão, para não dizer uma mentira? Assim desculpe se incomodo, tirando-o de seus hábitos para acompanhar-me. Há de reconhecer que mereço esta compensação.”
Nesse ponto, o romance mostra o auge da crítica social de José de Alencar: o casamento burguês, muitas vezes reduzido a interesses financeiros, perde sua essência afetiva e se transforma em mera transação mercantil.
Aurélia, a mulher, assume o papel de poder, invertendo a lógica patriarcal da época e colocando o marido na posição de dependente.
Resgate
Com o tempo, Fernando passa a refletir sobre sua própria conduta. O convívio com Aurélia, marcado pela frieza, desperta nele não só a vergonha pelo passado interesseiro, mas também o desejo de recuperar sua dignidade.
Determinado a conquistar novamente o respeito da esposa, ele decide trabalhar intensamente para devolver o dote que recebera.
Essa mudança não ocorre de um dia para o outro. Seixas luta contra as dificuldades, assume compromissos e mostra força de caráter.
Finalmente, consegue juntar o valor necessário e entrega o dinheiro a Aurélia, em um gesto simbólico que representa muito mais do que a devolução financeira, é a prova de sua transformação moral e de que não deseja mais ser sustentado.
Comovida, Aurélia percebe que a atitude de Fernando é o verdadeiro “resgate” de sua honra. Emocionada, declara-lhe seu amor e entrega a chave do quarto, sinal de que finalmente estavam prontos para viver como marido e mulher.
“Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.”
Ao final, descobrimos que Aurélia havia preparado um testamento em favor de Fernando, revelando que, apesar de todo o jogo de poder, sempre o amara intensamente.

O romance, então, conclui-se não apenas como uma história de amor, mas como um retrato crítico da sociedade carioca do século XIX, onde sentimentos e convenções sociais se misturavam em um delicado equilíbrio.
Esse fechamento mostra-nos que Senhora não é apenas um romance romântico, mas um romance urbano e de crítica social, em que José de Alencar expõe com ironia as relações entre amor, dinheiro e status.
Em resumo…
Senhora – Aspectos principais
- Autor: José de Alencar
- Publicação: 1875
- Gênero: Romance urbano; romance de costumes
- Escola literária: Romantismo (com traços de crítica social e transição para o Realismo)
- Estrutura: Dividido em quatro partes — Preço, Quitação, Posse, Resgate
- Narrador: Narrador onisciente e em terceira pessoa. Conhece os sentimentos e pensamentos das personagens. É irônico em diversos trechos e apresenta certo distanciamento crítico, principalmente ao tratar dos costumes da elite burguesa do século XIX.
Personagens principais:
- Aurélia Camargo: Protagonista do romance. Inicialmente, jovem pobre, órfã e apaixonada. É abandonada pelo seu amado e, após herdar uma fortuna, transforma-se numa mulher rica, altiva e independente. É símbolo da mulher que desafia os papéis femininos da época. Representa o amor ferido e a crítica à hipocrisia do casamento por interesse.
- Fernando Seixas: Jovem ambicioso, com aparência elegante, mas de caráter dúbio. Troca Aurélia para ficar noivo de Adelaide, moça rica, que lhe ofereceria um dote maior, mas acaba “comprado” pela protagonista. Ao final, passa por um processo de redenção e amadurecimento moral.
- Tio Lemos: Tutor e representante legal de Aurélia nos negócios. Intermediador entre a vontade da sobrinha e as convenções legais.
- D. Firmina: Companheira e guardiã social de Aurélia nos passeios e eventos. Simboliza as regras de etiqueta feminina da época.
Temas centrais
- Casamento por interesse: O romance trata o casamento como uma forma de contrato social e transação comercial. Aurélia inverte os papéis, “comprando” o homem que antes a rejeitou.
- Orgulho e amor ferido: O amor entre Aurélia e Seixas é marcado pela mágoa, orgulho, desejo de vingança e, depois, redenção.
- Crítica à sociedade burguesa: José de Alencar denuncia a hipocrisia dos costumes da elite carioca, onde sentimentos verdadeiros são frequentemente sacrificados em nome do dinheiro e da aparência.
- Emancipação feminina (incipiente): Aurélia é uma personagem à frente do seu tempo. Rica, inteligente, determinada, ela manipula as regras sociais a seu favor — mas também é prisioneira do próprio orgulho.
Estilo e linguagem
- Linguagem culta, com frases elaboradas e descrição detalhada das cenas e sentimentos.
- Diálogos bem construídos, com uso de ironia.
- Estrutura simbólica: as quatro partes do romance funcionam como metáforas de uma transação financeira — do preço ao resgate da relação.
- Forte presença de crítica social, o que o aproxima do Realismo, mesmo sendo um romance romântico.
Para lembrar na hora da prova (UERJ)
Para o vestibular da UERJ, é importante lembrar a divisão em quatro partes — Preço, Quitação, Posse e Resgate — e entender como cada uma simboliza uma etapa da transformação das personagens.
Subversão do modelo de mocinha romântica: Aurélia tem voz, poder e dinheiro — e usa tudo isso para reverter a lógica patriarcal.
A obra apresenta um paradoxo constante: amor x interesse, razão x emoção, submissão x poder.
A crítica social aparece sem abandonar o lirismo e o idealismo romântico.
Frase que pode resumir a essência da obra:
“Senhora é um romance que começa como vingança e termina como redenção, mas deixa uma pergunta no ar: qual o verdadeiro preço do amor?”
Conclusão
Senhora é um dos romances mais conhecidos de José de Alencar e um dos mais importantes do Romantismo brasileiro.
Nesse romance, José de Alencar combina romance e crítica social para revelar as contradições do século XIX. A trajetória de Aurélia Camargo mostra que amor e dinheiro, muitas vezes, se misturam de forma perigosa.
Mais do que uma história de paixão, o livro questiona as convenções da época e destaca a força feminina em um cenário dominado por interesses econômicos.
Por isso, Senhora continua sendo um clássico da literatura brasileira, atual e instigante, que vale a pena ser lido e redescoberto.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
