Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, é um romance excêntrico em relação aos outros romances de destaque do movimento romântico brasileiro.
Sua excentricidade justifica-se por apresentar traços bem diferentes de outras obras do período, como Lucíola e Senhora do escritor José de Alencar, por exemplo.
O único romance escritor por Manuel Antônio de Almeida é uma obra que foge ao que se espera de uma história romântica, como veremos a seguir.
Memórias de um sargento de milícias
Enredo
O romance narra a história de Leonardo, um sargento de milícia da cidade do Rio de Janeiro, durante o reinado de D. João VI. A narrativa inicia-se antes do nascimento do protagonista ao tratar do encontro entre Leonardo pataca, o seu pai, e Maria das Hortaliças, sua mãe.
Os dois se conhecem em um navio vindo de Portugal para o Brasil.
“Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos”.
Quando o casal chega ao Brasil, Maria já está grávida do filho Leonardinho. A criança nasce forte e faminta e tem o barbeiro e a parteira como padrinhos. Alguns anos se passam e a relação de Leonardo e de Maria vai se deteriorando gradativamente.
Leonardo trabalha como meirinho, uma espécie de oficial de justiça, e está sempre às voltas com os documentos do fórum. Ele começa a desconfiar de Maria e acha que ela tem um amante.
Então, resolve preparar uma armadilha para a mulher. Sai de casa, dizendo estar indo para o fórum, mas volta em seguida e pega Maria com um marinheiro dentro da própria casa e diante do filho.
“Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.
Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.
À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados.
-Grandessíssima!…
E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou… e pôs-se a tremer com todo o corpo”.
O amante consegue fugir, mas Maria fica para trás a tempo de Leonardo pegá-la. Ele bate na mulher enquanto o filho brinca com o seu chapéu e os documentos do fórum. Ao perceber o estado dos documentos na mão do pequeno, o homem larga a mulher e parte para cima do filho.
Ela consegue fugir e ir ao encontro do marinheiro. Vai embora com ele, deixando tudo para trás, inclusive o menino. Leonardo, enfurecido, pretende se vingar no filho, mas este é protegido pelo barbeiro, vizinho e padrinho de Leonardinho.
O pai decide, então, deixar o filho aos cuidados do barbeiro. Leonardinho cresce protegido pelo padrinho que tenta, sem muito sucesso, corrigir o menino que vive se metendo em confusões.
O bom homem matricula o menino na escola e coloca-o na igreja, para trabalhar como sacristão. Sonha em ver o menino tornar-se padre. Mas nada disso tem resultado com o garoto que continua a aprontar e é expulso das instituições.
Depois de se meter em muitas aventuras e confusões e já rapaz, Leonardinho acaba sendo preso pelo Major Vidigal, representante da ordem e da justiça na cidade e o homem mais temido do Rio de Janeiro.
Vidigal obriga Leonardinho a servir o exército, tornando-o um soldado de milícia. No entanto, nem o Major Vidigal consegue evitar que o rapaz se meta em problemas e desobedeça suas ordens.
Nesse meio tempo, Leonardinho também vive o amor. Primeiro, conhece Luísa, uma moça recatada, descrita como alguém comum, não sendo nem bonita, nem feia. Mas ela acaba casando-se com outro.
Depois, conhece Vidinha, uma moça alegre e sedutora, com quem vive uma intensa paixão. Por esse tempo, é novamente preso pelo Major que pretende castigá-lo com grande rigor.
No entanto, Vidigal é convencido por Maria Regalada, sua amante e amiga da parteira, madrinha de Leonardo, a perdoar o moço. Ao invés do castigo por sua má conduta, Leonardinho é promovido a sargento.
Ele, então, reencontra Luísa, seu primeiro amor, que agora está viúva e rica. E a história termina com os dois casados e com Leonardinho promovido a sargento de milícias.
Narrador
Embora o romance tenha no título a expressão “memórias”, seu narrador não é o protagonista da história, ou seja, Leonardinho (como o chamamos aqui para diferenciá-lo do pai que tem o mesmo nome).
O narrador é onisciente e o foco narrativo está na 3ª pessoa. Esse enfoque traz maior objetividade para a trama e garante a esse narrador a liberdade de ser bastante irônico e bem humorado.
O protagonista
O herói do romance é Leonardinho. Na verdade, esse personagem é o primeiro anti-herói de nossa literatura. Essa figura é alguém que apresenta tanto traços positivos quanto negativos, sendo muitas vezes amoral.
É o caso de Leonardinho. Desde pequeno, é uma criança travessa e inquieta que dá muito trabalho aos pais. Abandonado pela mãe e rejeitado pelo pai, cresce sob os cuidados dos padrinhos, o barbeiro e a parteira.
Seu caráter incorrigível garante muita dor de cabeça para o barbeiro que tem sempre esperança de consertá-lo, mesmo sem nunca conseguir sucesso.
Mesmo não tendo perfil para oficial da lei, acaba tornando-se soldado sob as ordens do Major Vidigal. E nem mesmo o homem mais poderoso da cidade consegue manter Leonardinho nos trilhos.
Cenário
A história de Memórias de um sargento de milícias se passa no Rio de Janeiro, no ano de 1810, em pleno reinado de D. João, príncipe regente de Portugal. A cidade é, nesse período, a capital do reino português.
O autor explora os costumes da classe trabalhadora, as festas de rua, os eventos da igreja, o modo como o povo se relaciona e age. O livro, assim, caracteriza-se como um romance histórico e de costumes.
Um romance excêntrico
Como já dissemos na introdução, esse é um romance excêntrico. Isso se explica por alguns aspectos da obra que a tornam diferente de outras produzidas no mesmo período.
Primeiro, temos uma obra com foco na classe baixa e não na burguesia. Os personagens do livro são trabalhadores como o barbeiro, a parteira, o oficial de justiça, e figuras marcantes das ruas da cidade como a Cigana e o Major Vidigal.
Depois, não há idealização. Uma das características principais do Romantismo, o amor, é neste romance despido de qualquer idealização. Leonardo é “filho de uma pisadela e de um beliscão” e não de um amor avassalador e sublime.
A mocinha do livro, Luísa, não é descrita como dona de uma beleza estonteante e delicada, mas como uma moça comum, sem atrativos que a destaquem.
“Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça”.
As personagens vivem em torno de peripécias, traições, mentiras, acordos duvidosos. Ou seja, em muito diferem do caráter elevado e dos bons modos da classe burguesa que povoa os outros romances do período.
Ausência de maniqueísmo
O maniqueísmo define-se como a concepção da realidade através de dois princípios opostos. Vemos no Romantismo a constante luta do bem contra o mal, representada nas figuras dos mocinhos e dos vilões, respectivamente.
Em Memórias de um sargento de milícias, as personagens não podem ser colocadas nessas categorias. O protagonista da obra não é um mocinho, mas, sim, um malandro. Alguém que vive segundo o seu próprio código de conduta e que em muito difere do que se espera de um herói.
Em outras obras do Romantismo, o mal é castigado no final da história ou, pelo menos, corrigido. No romance de Manuel Antônio de Almeida, isso também não acontece. Vemos Leonardinho, mesmo depois de cometer muitos deslizes, ser premiado com o casamento e uma promoção.
Vemos, assim, que o romance não busca exaltar valores elevados, nem condenar comportamentos considerados ruins, mas compreender o cotidiano e a natureza humana em sua essência mais autêntica.
Conclusão
Memórias de um sargento de milícias é, portanto, uma obra singular dentro do Romantismo brasileiro.
Ao contrário das narrativas idealizadas e moralistas que dominavam o período, Manuel Antônio de Almeida apresenta um retrato realista, bem-humorado e profundamente humano da sociedade carioca do início do século XIX.
Em vez de heróis virtuosos e amores sublimes, o autor coloca no centro de sua história pessoas comuns — com defeitos, vícios, contradições e uma espontaneidade que as aproxima do leitor.
Leonardinho, o primeiro anti-herói de nossa literatura, simboliza essa ruptura. Seu comportamento malandro e sua trajetória repleta de trapalhadas e recompensas desafiam a lógica moral da época e anunciam o olhar crítico que mais tarde seria explorado pelo Realismo.
Por meio da ironia, do humor e da observação aguda dos costumes, Memórias de um sargento de milícias permanece como um marco de originalidade e ousadia na literatura brasileira.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
