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A morte de Baleia

  • Samira Mór 

“A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas.”

Todos os anos a cidade de Paraty, no litoral do estado do Rio, faz uma belíssima festa sobre livros e literatura. É a Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP. Tive a felicidade de visitar a cidade várias vezes durante essa festa.

E, em outra hora, posso vir falar sobre a festa em si. Porque, para quem ama livros e literatura, é um prazer enorme estar na cidade na época da FLIP.

Mas hoje quero falar sobre um momento específico de minhas visitas à FLIP e à cidade de Paraty.

Cidade de Paraty, palco da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty.
Paraty, cidade onde ocorre a FLIP, Festa Literária Internacional de Paraty

Todos os anos, a Festa homenageia um escritor. O momento de que quero falar aconteceu no ano em que Graciliano Ramos foi o escritor homenageado.

Durante os dias em que a FLIP acontece, as praças do centro histórico são enfeitadas com os motivos da literatura do escritor escolhido.

Então, a praça da matriz tinha, em papel marché, os personagens de Graciliano, inclusive a família de Fabiano e Sinhá Vitória. Estavam enfileirados lado a lado os pais, os filhos e a cachorra Baleia. E foi divertido caminhar por ali e ver os personagens do velho Graça dispostos pelo local.

Foto em que caminho pela praça entre os personagens de Vidas secas.
Meu passeio por entre as personagens do livro Vidas secas

A casa de Cultura da cidade também faz uma exposição com obras e referências do escritor, fotografias, objetos. E foi lá que tive o tal momento epifânico.

É que exibiam, durante a exposição, o filme Vidas secas, inspirado no livro de mesmo título do escritor.

Embora já desse aula de Literatura há muitos anos e aulas sobre o livro Vidas secas, nunca tinha assistido a esse filme. É um filme antigo, em preto e branco, e, no momento em que estava vendo a exposição, a cena exibida era justamente a da morte da cachorra Baleia.

É uma cena tocante. Fiquei parada ali assistindo. O som do tiro dado por Fabiano, o uivo da cachorrinha e seu semblante assustado quando ela se esconde do dono, sem entender por que ele está fazendo isso a ela. A expressão de dor nos olhos do homem. A mãe abraçada aos filhos na cama de varas dentro da casa.

Cena do filme Vidas secas. Em foco, está a cadelinha Baleia, personagem marcante da obra de Graciliano Ramos.
Cena do filme Vidas secas, inspirado na obra homônima de Graciliano Ramos

Esse momento foi suficiente para o meu incômodo e mal-estar. E também foi suficiente para ficar guardado em minha memória junto com outros que tenho de minhas passagens pela cidade e pela FLIP.

Vidas secas é uma das obras mais importantes de Graciliano Ramos e também da Literatura Brasileira. E o capítulo da morte da cachorra Baleia, inicialmente um conto publicado pelo escritor para que pudesse pagar a diária da pensão onde se hospedava, é certamente o mais marcante do livro.

“Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás” (RAMOS, Cartas 276)

Quando Graciliano o publicou como conto em um jornal do Rio de Janeiro, o texto comoveu a todos que o leram, inclusive a escritores da época, como Vinícius de Moraes e Rubem Braga. O sucesso foi tanto que, tempos depois, a história de Baleia e da família de retirantes tornou-se o livro Vidas secas.

Mas, voltando à cena do filme, é impressionante como um momento pode se gravar em nossa memória e tornar-se tanto a lembrança de algo negativo quanto de uma coisa positiva.

Ver encarnada a morte do pobre animal, já tão doloroso de ser lido, é triste e impactante. O fato de ser em preto e branco torna essa cena ainda mais melancólica.

Ao mesmo tempo, o movimento do lugar, o som e o colorido da festa lá fora, na rua, me traziam uma sensação ambígua, um misto de tristeza e alegria.

Não assisti às cenas seguintes. Saí do salão e desci as escadas da Casa de Cultura rumo à rua, mas levei comigo a cena.

E fiquei pensando em como um escritor consegue criar com tanta maestria uma história a ponto dela nos impactar em palavras e em imagens. E de não nos deixar mais. De passar a fazer parte do nosso imaginário.

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