Adélia Prado é uma das vozes mais importantes da poesia brasileira contemporânea. Mineira de Divinópolis, sua obra é um mergulho profundo no cotidiano, na fé, no corpo e nas relações humanas.
Com uma linguagem direta e ao mesmo tempo poeticamente rica, ela nos mostra que o sagrado e o profano caminham juntos na vida e que a poesia pode estar no dia a dia, nas coisas mais simples.
Quem é Adélia Prado?
Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em 13 de dezembro de 1935, em Divinópolis, Minas Gerais, onde vive até hoje.
Seu pai era ferroviário e sua mãe dona de casa. Aos 15 anos, perdeu a mãe e, sendo a irmã mais velha, passou a cuidar da casa e dos irmãos. Formou-se professora em 1953 e exerceu a profissão até 1979. Em 1958, casou-se com José Assumpção de Freitas.
Estudou Filosofia e foi diretora do grupo teatral Cara e Coragem e Secretária de Educação e Cultura de Divinópolis.
Sua vida pessoal e familiar são a matéria de sua obra. Casada e mãe de cinco filhos, Adélia Prado sempre buscou inspiração na rotina doméstica, nas pequenas alegrias diárias e nos desafios do dia a dia.

Em 1976, aos 40 anos, publicou seu primeiro livro, Bagagem, tendo como padrinho e grande apoiador ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade. Seu segundo livro, publicado dois anos depois, O coração disparado, deu à autora o prêmio Jabuti.
Em 2014, recebeu outro prêmio de grande destaque, o Lifetime Recognition, no Canadá. E, em 2024, mais duas grandes honrarias, os prêmios Machado de Assis e Camões.
A poesia de Adélia Prado
A poesia de Adélia Prado é marcada por características muito particulares, que a tornam imediatamente reconhecível.
Uma de suas marcas é a forma como ela mistura o sagrado e o profano, o divino e o terreno. A fé católica é uma presença constante em seus poemas, mas ela a aborda de uma maneira muito humana, entrelaçando-a com as experiências do corpo, do desejo, do pecado e da redenção.
Sua linguagem é simples, coloquial, muitas vezes com um tom que lembra a conversa. No entanto, por trás dessa aparente simplicidade, há uma profundidade filosófica e uma riqueza de imagens que surpreendem o leitor.
Adélia valoriza o cotidiano, o doméstico, o feminino, elevando esses temas à categoria de arte. Ela nos lembra que a poesia não está apenas em grandes eventos, mas também nos gestos mais comuns.
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

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Em Bagagem (1976), seu primeiro livro, já se percebe a força de sua voz, que fala da mulher, do amor, da maternidade e da espiritualidade de forma visceral. Em O Coração Disparado (1978), a poeta continua a explorar as relações, a passagem do tempo e a fé, sempre com sua perspectiva única.
Primeira infância
Era rosa, era malva, era leite,
as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser famosa.
Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da Trindade te proteja.
Em ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos a vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.
Em Terra de Santa Cruz (1981), vemos como Adélia capta a beleza de instantes do cotidiano e registra flashs de intimidade com simplicidade e leveza.
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva

A obra de Adélia Prado, que inclui também prosa, é um convite a olhar para dentro de si e para o mundo ao redor com mais atenção e sensibilidade, percebendo a poesia nas coisas mais simples.
Avós
Minha mão tem manchas,
pintas marrons como ovinhos de codorna.
Crianças acham engraçado
e exibem as suas com alegria,
na certeza – que também já tive –
de que seguirão imunes.
Aproveito e para meu descanso
armo com elas um pequeno circo.
Não temos proteção para o que foi vivido,
insônias, esperas de trem, de notícias,
pessoas que se atrasaram sem aviso,
desgosto pela comida esfriando na mesa posta.
Contra todo artifício, nosso olhar nos revela.
Não perturbe inocentes, pois não há perdas
e, tal qual o novo,
o velho também é mistério.
Características da poesia de Adélia Prado
- Linguagem coloquial e simples;
- Cotidiano como tema central;
- Reflexão sobre a condição feminina;
- Fé cristã;
- Originalidade e lirismo;
- Traços narrativos e metalinguagem;
- Influência do Modernismo.
Conclusão
Adélia Prado nos ensina que a poesia está em tudo: na panela no fogão, na fé que move a vida, no corpo que sente e deseja, nas lembranças de um dia comum.
Sua obra é um presente para quem busca uma literatura que dialogue com o real de forma honesta e profunda. Ela nos convida a celebrar a vida em sua totalidade, com suas belezas e suas dores.
Que tal se permitir descobrir a poesia de Adélia Prado e encontrar a beleza nas pequenas coisas do seu dia a dia? Qual aspecto da poesia dela mais te chamou a atenção? Compartilhe sua opinião nos comentários!
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
