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Um crime mais que perfeito, um conto de Luiz Lopes Coelho

  • Samira Mór 
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Quando o furgão da “Granja Holandesa” contornou a esquina e parou diante do número 168, Davi abriu a caderneta e anotou: quinta feira, chegada, 4:15. Assistiu ao leiteiro, com passadas joviais, deixar o litro de leite na soleira da porta, e retornar ao furgão, posto logo em movimento. Davi escreveu: saída, 4:20. Embolsou a caderneta, desprendeu-se do pilar que lhe servia de esconderijo, inquiriu a neblina, avivou os passos. Parecia um operário em marcha para o trabalho. No tear da razão, urdia o crime original.

Ninguém o vira sair de casa, ninguém presenciara a sua volta. Subiu a escada, estacionando no corredor. O quarto de tia Olga estava fechado, mas no de Cláudia a luz riscava o chão pela fresta da porta. Achegou-se e, com a palma da mão, empurrou-a com cuidado. Pousando mansamente os pés no assoalho, introduziu-se na alcova, moveu-se até a mesa da cabeceira, reclinou-se, ergueu o interruptor do abajur e, antes de comprimi-lo, contemplou a irmã adormecida. Há algum tempo atrás, madeixas dormiam no colo de brancura macia. Mas, o estilo existencialista sacrificou-as, ao surpreender a transfiguração da menina em moça. Para Davi, ela seria sempre uma criança. E que prazer divinal é fitar-se uma criança a dormir! Seus olhos foram ficando mansos, os lábios planejaram um sorriso, a cabeça se inclinou no êxtase, como a dos santos da Renascença a namorar o Jesus Menino. Um leve ruído: a adoração se encobriu de trevas.

Claudia dorme tranquilamente em seu quarto, sendo observada pelo irmão.

Com a mesma cautela, saiu para o corredor, entrou em seu quarto. Na cômoda, os retratos de sua mãe e de Cláudia sorriam em idades diferentes. A lembrança súbita de Jorge Antar dissipou o enlevo deixado em seus olhos pela moça em doce sono. Virou-se para o retrato: “Juro, mamãe, que acabarei com isso”. Revoltava-se com o amor de Cláudia pelo malandro. Conhecia-o muito bem: vivia de golpes engendrados com finura, em conluio com deputados negocistas; frequentava mulheres livres, atraídas pela sua aparência simpática. A matreirice do olhar acudia à impudência da voz, das gargalhadas, e, desse conchavo vulgar, participava ainda a estroinice de gestos, de maneirismos. Jorge lembrava uma anedota fescenina. Além de Cláudia, já de si um alvo excelso, visava o malandro à herança da moça, incauta e apaixonada. Não, Jorge não seria o homem de Cláudia, dessa Cláudia que ele, substituindo o pai, ajudara a criar.

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Há dias, por isso, resolvera mudar seu comportamento, não agravar, com novas rixas, suas relações com a irmã. Recolhera conselhos, reprimira censuras e ameaças, enquanto o plano diabólico progredia na ardência do cérebro, como o relógio trabalhando no interior da bomba.

Deitado na cama, leu a caderneta: segunda-feira, 4:08 – 4:15; quarta-feira, 4:05 – 4:12. Na última anotação: chegada, 4:15, saída: 4:20. 0 furgão parava na Rua Sena do Vale, n° 168, sempre depois das 4 horas da madrugada, ao passo que o leite era entregue em sua casa às 3 horas mais ou menos. Para o plano, o quarto minguante contribuiria com a escuridão. O mês de junho, com a neblina. Tudo perfeito. E mais perfeito, ainda, porque Cláudia iria passar o fim de semana na fazenda de Doralice Neves. Davi conhecia os hábitos de Jorge: no sábado, acordava mais cedo para atender ao expediente da manhã e saía de casa antes da criada entrar em serviço. Seu plano era exato como a sucessão dos dias, infalível como a própria morte…

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Jorge saindo para o trabalho, bem cedo, no sãbado.

No dia seguinte, sexta-feira, Davi foi à estação. Cláudia exultava com a partida. O cabelo curto, colado nas têmporas e nas orelhas, era um gorro de cetim negro incumbido de revelar a brejeirice azul dos olhos. Davi recomendou cuidado nas cavalgadas, nos banhos na cascata, respondendo com um aceno ao sorriso levado vagarosamente pelo trem.

Sete horas da noite. Seu plano seria executado a partir das 3 horas da manhã. Desejava que a madrugada chegasse naquele instante, expirasse neblina, regelasse a escuridão, afugentando os homens e facultando-lhe a redenção de Cláudia.

Davi jantou com tia Olga e convidou-a a ir ao cinema, o que fazia vez por outra. Evitou, naquela noite, a companhia de um amigo, temendo revelar, à sensibilidade alerta do íntimo, um gesto mais nervoso, um silêncio desusado, enfim, um sinal de inquietação.

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Voltaram quase à uma hora. A tia disse-lhe boa-noite.

– Vou dormir também. A vida amanhã começa mais cedo.

No quarto, ingeriu um excitante para combater o sono e o cansaço. Tia Olga, naquele momento, bebia, com seu remédio costumeiro, um sedativo inocente, preparado por Davi. Abriu a gaveta da cômoda, certificando-se de que o vidro e a lanterna lá estavam. Ergueu a coberta da cama para ver os sapatos de borracha. Um mágico verificando o instrumental antes de levantar-se o pano. Um mágico, porque aqueles objetos o auxiliariam no sortilégio fatal.

Tentou ler, mas a excitação repeliu o livro. Desatento, folheou revistas, deixando escoar o tempo em que o quarto permanecia normalmente aceso, antes de dormir. Depois, apagou a luz; no cenário negro, seus olhos escancarados denunciavam o felino emboscado.

O motor do caminhão forçou a marcha. Era o leiteiro da “Chácara Sabaúna” virando a esquina. Ouviu a parada em frente de sua casa; o tilintar de vidros quando o litro foi arrancado da caixa de arame; os passos abafando-se do outro lado do jardim, logo depois acentuados no compasso do retorno; a batida do portão.

O furgão do leite passa pela casa, de madrugada, e Davi começa a colocar seu plano em ação. Trecho do conto de Luís Lopes Coelho, Um crime mais que perfeito.

Sentou-se na cama. Tirou os sapatos e calçou os de sola de borracha. Levantou-se, foi até a cômoda, abriu a gaveta e meteu o vidro no bolso. Apanhando a lanterna, clareou o relógio de pulso: 3:20. Atravessou o corredor iluminado, entreabriu a porta do quarto de tia Olga. O facho de luz percorreu o chão, trepou no criado-mudo, destacando o copo vazio, deslizou pela cama e incidiu sobre o tapete. Cruzou a porta, desceu a escada, aclarando os degraus, e afinal entocou-se no armário, desapareceu. Davi vestiu o sobretudo, abriu a porta apenas para que seu braço passasse, segurou o litro de leite pelo gargalo, trazendo-o para dentro do vestíbulo. Iluminado o caminho, seguiu para a copa; aí reclinou a lanterna na borda de uma lata e a pia se inundou de luz. Distorceu o arame fino da tampa da vasilha, retirou-a. Derramou um pouco de leite, substituindo-o pelo conteúdo do vidro que trouxera. Recolocou a tampa, enlaçando-a com o arame, torcido apenas uma vez. Abriu a torneira para lavar o vidro cuidadosamente. Meteu o litro de leite no bolso largo do casaco e, no outro, enfiou as luvas de borracha que tia Olga usava. Abotoou o sobretudo, saiu pela porta da cozinha. Fez sumir na lata de lixo o vidro lavado. Luz sobre o pulso: 3:35.

Seguiu para a casa de Jorge, atingindo-a pelos fundos. Agachando-se, atravessou a sebe e escondeu-se sob o telheiro do tanque. Relógio iluminado: 4 horas.

Durante dez minutos ali ficaram, confundidos com o negrume da noite, Davi e seus pensamentos. O furgão parou. Decifrou a jovialidade do entregador pelos passos meio dançados. Calçou lentamente as luvas. De novo, os passos, o motor pulsando, a neblina tragando as luzes vermelhas do furgão.

Sempre encostado à parede, Davi caminhou até a porta lateral da casa, onde uma pequena entrada o protegia da visão da rua. Na soleira de mármore, aproximou os dois litros de leite, trocou-lhes as tampas de papelão, reajustando as presilhas. Levantou-se, enfiou no bolso do casaco o que fora deixado para Jorge e, com a mesma precaução, dirigiu-se ao lugar da espera, perto do tanque. Aí descalçou as luvas e guardou-as. Retomou o caminho de volta, pisando sempre na parte cimentada do quintal a fim de não largar vestígios de seu sapato.

A garrafa de leite através da qual o protagonista praticará seu crime mais que perfeito.

Na Rua Monsenhor Antunes, tomou pela direita e não pela esquerda, por onde viera. A neblina espessa não venceu a intrepidez da caminhada de volta, última pedra do mosaico delituoso. Fechando-se na cozinha de sua casa, sentiu-se liberto. Tonificado pelo descanso de alguns segundos, repôs em seus lugares as luvas, o sobretudo e o litro de leite. Precedido pelo irrequieto facho de luz, galgou a escada, transpôs o corredor, entrou no quarto. Depois de tirar os sapatos, acendeu o isqueiro e aqueceu-lhes as solas para secá-las mais rapidamente. Em seguida limpou-os com um pano e guardou-os no lugar costumeiro. Preparado para dormir, ingeriu uma pílula. Caiu no leito, com um suspiro de alívio. Em breve o cansaço e o hipnótico trouxeram o sono que surpreendeu Davi no gozo de sua obra perfeita.

– Davi, acorda. Acorda, menino!

E tia Olga continuava a agitá-lo.

– O que é que há, titia?

– Estão aí dois homens da polícia que querem falar com você.

– Da polícia? Diga-lhes que descerei imediatamente.

Enquanto as mãos trêmulas lavavam o rosto, pensou: “É impossível. Não cometi nenhum erro. Ninguém me viu”. Revisou mentalmente todos os seus atos: não encontrou a menor falha. Amarrando o roupão, desceu a escada.

– Sr. Davi Ortiz? Carlos Antunes, delegado de plantão.

– Muito prazer.

– Estou aqui em cumprimento de um dever bastante desagradável. Jorge Antar foi encontrado morto, esta manhã, na casa em que morava.

– Que horror!

– Sua irmã Cláudia… também morta. Ao lado dele. Casamento contrariado, informou a empregada. Suicidaram-se com veneno misturado no leite.

A vida ficou pesada para Davi e, um dia, ele a jogou no mar.

COELHO. Luiz Lopes. Um crime mais que perfeito. In.: A morte no envelope. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.

Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

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