Meu encontro com Clarice se deu em uma aula de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Estudava à noite e era difícil estar totalmente concentrada para as aulas, considerando que eu trabalhava o dia todo como professora em turmas do Ensino Fundamental. Chegava à universidade cansada e, muitas vezes, doida só por um banho e uma cama.
E foi numa noite de muito cansaço que tive um desses encontros com a arte dos quais nos lembramos pela vida toda.
Entrei na sala e lá estava ela: minha professora de Literatura Brasileira daquele período. Chamava-se Therezinha e foi ela quem me apresentou à Clarice.
Therezinha gostava de dar aulas de um jeito bem diferente e que nós achávamos o máximo por enxergarmos nisso um tantinho de rebeldia. Sobre uma mesa antiga, grande e de madeira pesada, a mesa do professor, ela sentava-se feito um Buda, com as pernas sobre o corpo, e, assim, ministrava os conteúdos.
E foi desse jeito irreverente que ela fez com que Clarice surgisse inteira e potente diante de meus olhos. Bela, forte, quase uma entidade. Hoje, acho que é isso mesmo que ela se tornou, uma espécie de entidade.
Therezinha me apresentou a Clarice Lispector. Naquela aula, ela falou dessa mulher nascida ucraniana e tornada visceralmente brasileira e nordestina. A professora me revelando a escritora. Foi mágico!
E ela foi desfiando, em sua retórica mansa e clara, as histórias de Clarice, seus livros, sua filosofia, a sedução de suas palavras. Eu estava encantada! Naquele momento, nem me lembrava do cansaço. Tinha esquecido do chuveiro e da cama que me esperavam em casa.
E o deslumbre intensificou-se quando Therezinha trouxe para aquela cena a figura de Macabéa. A protagonista de A hora da estrela chegou até mim como um soco no estômago. Mas doeu e maravilhou, ao mesmo tempo.
Macabéa, nordestina, como Clarice, mas que não teve as mesmas oportunidades que ela, que não teve as mesmas oportunidades que eu. A literatura tem esse poder de reflexo, não é? E a história de Macabéa refletiu-se em mim, não por semelhança, mas por diferença.
Fiquei profundamente tocada por sua história, narrada pela minha tão admirada professora. Foi uma das aulas mais inesquecíveis que tive na universidade, essa instituição da qual tanto me orgulho.
Nesse dia, conheci Clarice Lispector. Claro que já tinha lido sobre ela na escola. Mas foi Therezinha quem me apresentou a essa entidade de nossa literatura, de fato. Porque uma coisa é ouvir falar, outra é conhecer.
Conhecer, mesmo, foi depois, na verdade. Foi quando fui aos livros de Clarice e à sua biografia. Muito mesmo aos livros, que é o que o escritor deixa de si quando já nos deixou em matéria.
Mas naquele dia, saí da aula com um desejo enorme de ler A hora da estrela. E qual não foi a minha alegria, quando, no dia seguinte, passando pela livraria da faculdade, encontrei na prateleira esse livro.
Levei-o para casa ansiosa por lê-lo. Não tinha tantos livros em casa como tenho hoje. Esse foi o primeiro livro de Clarice que comprei. Comecei a leitura ávida, mas fui bloqueada pelo preâmbulo de Rodrigo S.M., o narrador.
Era difícil passar por aquelas palavras, por aquele novelo de considerações de um escritor em conflito com a própria escrita. E deixei o livro de lado. Mas não me esqueci de Clarice, nem de Macabéa, nem da Therezinha.
Poucos anos depois, já dando aula de Literatura para alunos do 3º Ano do Ensino Mèdio, precisei explicar A hora da estrela para o vestibular que fariam. E voltei, então, ao livro que agora morava em minha estante junto com alguns outros da autora já lidos por mim.
Finalmente, consegui absorver um pouco da saga de Macabéa. Digo um pouco porque essa não é uma história para se ler uma única vez, mas, sim, muitas vezes e em momentos diferentes da vida. Comigo, a cada vez que leio, me diz algo de novo e de profundo.
Clarice e Macabéa têm caminhado comigo desde aquele primeiro encontro na aula de Literatura Brasileira na UFJF. Desde aquela aula da professora Therezinha que, sentada sobre a mesa, abriu a porta desse universo para mim.
Agradeço por esse encontro imensamente!
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
