Macunaíma, romance escrito por Mário de Andrade e publicado em 1928, é uma das obras fundamentais do Modernismo brasileiro.
Trata-se de uma narrativa divertida que mistura lenda, mito, crítica social e poesia, tudo embalado numa linguagem inventiva e profundamente brasileira.
Mas para entender bem esse livro, é preciso antes compreender o contexto em que ele foi escrito e quem foi o seu autor.
Neste post, veremos quem foi Mário de Andrade, qual a sua importância para a cultura brasileira, o resumo do romance Macunaíma e a jornada do herói e as características marcantes desse livro.
Mário de Andrade e o projeto de uma identidade brasileira
Mário Raul de Moraes Andrade nasceu em São Paulo, em 1893. Foi poeta, romancista, ensaísta, musicólogo e um dos grandes nomes da cultura brasileira.
Participou ativamente da Semana de Arte Moderna de 1922, movimento que buscava romper com os padrões acadêmicos e colonizados da arte nacional.

Mário via a literatura como uma forma de expressão da alma do povo, e por isso mergulhou nas manifestações populares, no folclore, na música, nos ritmos e nas falas do povo brasileiro.
Com Macunaíma, ele parece ter condensado tudo isso num único personagem, um anti-herói, que carrega em si a ambivalência, as contradições, a esperteza, a preguiça, a beleza e o caos do Brasil.
A jornada do herói e a estrutura de Macunaíma
O romance é estruturado como uma espécie de rapsódia: capítulos que podem parecer independentes, mas que juntos constroem uma trajetória.
Macunaíma é um herói às avessas, cuja jornada se inicia na Amazônia e termina com sua morte e transformação em estrela. A narrativa segue uma lógica de oralidade e fantasia, marcada por episódios fantásticos e personagens simbólicos.
Os Tapanhumas e as origens do herói
O protagonista nasce na tribo dos Tapanhumas, às margens do rio Uraricoera, e desde cedo demonstra traços que o acompanharão por toda a vida: é preguiçoso, irreverente, astuto.
Macunaíma é o filho mais novo de uma família que compreende a mãe e mais dois irmãos, Maanape, o mais velho, e Jiguê, o irmão do meio. Os dois irmãos funcionarão como a sabedoria e a força, respectivamente, do herói Macunaíma em sua jornada.
Essa jornada inicia-se quando o protagonista desobedece as ordens maternas e sai de casa para caçar na floresta. A mãe era quem tinha a tarefa de trazer alimento para a família e o fazia transformando-se em uma anta, animal grande e forte.
Macunaíma desconhecia esse fato e, ao encontrar-se com a mãe transformada em anta, comete sua primeira transgressão. Vendo nela a sua caça, mataa própria mãe. A tribo, por sua vez, ao tomar conhecimento do acontecido, expulsa o herói e os dois irmãos do lugar.

Macunaíma sai, então, perambulando pela floresta, junto de Maanape e Jiguê, e à mercê de muitos perigos.
A relação com Ci e a perda da muiraquitã
Nessa caminhada, o herói conhece se apaixona imediatamente por Ci, a Mãe do Mato, figura mítica da floresta. Ci era a rainha da Icamiabas, uma tribo composta apenas por mulheres. Como condutora da tribo, ela devia manter-se virgem.
No entanto, Macunaíma domina Ci e ensina-lhe a “brincar”. Essa é a segunda transgressão do herói. Esta será seguida de uma confusão com um ser da floresta que, com raiva do herói, buscará vingança.
Da união entre o herói e a rainha das Icamiabas nasce um filho. Um bebê forte e bonito que será envenenado por uma enorme cobra. Essa é a vingança do ser da floresta que Macunaíma havia irritado.
Ci, deprimida pela perda do filho, decide morrar e virar estrela, mas, antes, dá a Macunaíma um amuleto mágico: a muiraquitã, símbolo de suas origens, do seu amor e de proteção.
A perda da Muiraquitã
Triste pela morte de Ci, Macunaíma continua sua caminhada pela Amazônia, junto dos irmãos Maanape e Jiguê. Ao passar perto de um rio, escuta o canto de uma bela mulher. É uma Uiara, uma sereia.
Ele não resiste e cai na água em busca da Uiara. Esta transforma-se em um monstro horrível e leva o herói para o fundo das águas. Ele consegue se desvencilhar, mas perde a muiraquitã que vai parar na barriga de um peixe.
O peixe é pescado e colocado em um navio que vai para São Paulo. Chegando lá, a muiraquitã acaba indo parar nas mãos de um comerciante de pedras preciosas chamado Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, comedor de gente.
Macunaíma descobre o paradeiro da pedra e parte de sua terra com os irmãos Jiguê e Maanape rumo a São Paulo, em busca do talismã.
A modernidade paulista e a figura do vilão
A chegada a São Paulo marca o encontro de Macunaíma com a modernidade. A cidade aparece como símbolo da racionalidade, da burocracia, do progresso industrial e da desigualdade social.
Lá, o herói tem de se adaptar a um mundo que não reconhece a sua linguagem nem seus costumes. A floresta é trocada por ruas movimentadas, a oralidade é substituída por documentos e formalidades.
Pietra, o vilão da história, representa esse novo Brasil urbano, capitalista e predador. Ele é uma caricatura do empresário moderno, e sua figura ganha contornos grotescos: além de roubar a muiraquitã, devora gente.
Macunaíma tenta enfrentá-lo em diversas ocasiões, às vezes com astúcia, às vezes com magia, mas nem sempre com sucesso.
As aventuras e a recuperação do talismã
Durante sua estadia em São Paulo e, mais tarde, no Rio de Janeiro, Macunaíma vive uma série de aventuras e encontros com figuras que fazem parte do imaginário mítico brasileiro.
A linguagem da narrativa acompanha essas mudanças: mistura dialetos, sons indígenas, palavras estrangeiras, gírias e expressões populares. É uma escrita viva, que dialoga com a fala do povo e rompe com os padrões da norma culta.
Em um determinado momento, o herói consegue recuperar a muiraquitã, mas logo a perde novamente, desta vez de forma definitiva. Essa oscilação entre conquista e perda é simbólica: o herói nunca está completamente em posse de sua identidade ou de seu destino.
O retorno à floresta e a morte do herói
Sem o amuleto e sem rumo, Macunaíma decide voltar à Amazônia. A floresta, que antes era o ponto de partida, torna-se agora o lugar da desilusão. Já não há o que encontrar. A morte do herói ocorre de forma simbólica: ele desaparece no céu e se transforma em estrela, como Ci. A narrativa termina com um papagaio contando sua história — um aceno à tradição oral brasileira.

A presença das vanguardas e o caráter poético da obra
Macunaíma é uma obra profundamente influenciada pelas vanguardas europeias, especialmente o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo.
A forma fragmentada da narrativa, o uso do humor, a liberdade com a linguagem e a experimentação formal remetem aos movimentos que sacudiram a Europa no início do século XX.
Mas o mérito de Mário de Andrade está justamente em não copiar essas correntes. Ele as adapta à realidade brasileira, subverte-as, mistura-as com o folclore e com a cultura popular.
A linguagem poética da obra — ora lírica, ora grotesca — é um dos seus maiores trunfos. A poesia aparece nas imagens, nas repetições, nas onomatopeias, nos neologismos. É uma escrita que canta, que dança, que desafia.
Macunaíma, uma alegoria do Brasil
Macunaíma é, acima de tudo, uma grande alegoria do Brasil. O herói sem nenhum caráter é uma metáfora do povo brasileiro: múltiplo, contraditório, resistente, encantador e por vezes autodestrutivo.
A mistura de raças, culturas e línguas que aparece no livro é o retrato de um país em formação — um país que ainda busca sua identidade.
A obra também reflete sobre os conflitos entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno, entre o rural e o urbano, entre o mítico e o racional.
Ao construir essa narrativa que vai da floresta à cidade, da oralidade à escrita, Mário de Andrade nos convida a pensar sobre quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo.
Conclusão
Macunaíma é um daqueles livros que não envelhecem. Continua atual, provocador, inquieto.
Ler essa obra é entrar em contato com um Brasil que é ao mesmo tempo real e fantástico, concreto e simbólico. A trajetória de Macunaíma é a nossa: feita de avanços e tropeços, de perdas e reinvenções.
Com esse romance, Mário de Andrade não apenas criou um herói, mas esculpiu um retrato do Brasil em palavras. E se o herói não tem caráter, talvez seja porque carrega todos os nossos — inclusive os que preferimos esconder.
Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
