Era um livro grosso, meu Deus… Foi o que disse Clarice Lispector no conto Felicidade clandestina, quando finalmente conseguiu pôr as mãos no tão desejado Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
No caso da menina do conto/crônica de Clarice, o tal livro grosso era uma alegria imensa. No meu caso, foi um pouco diferente.
O livro grosso que tinha nas mãos era Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Mais de 500 páginas de prosa poética. Confesso que o título me atraía muito. O que eu sabia sobre o autor também.
Mas a quantidade de páginas me assustava. Embora sempre tenha sido uma leitora ávida, nunca havia antes me aventurado por um livro daquela grandeza.
Para piorar, eu não tinha tempo suficiente para lê-lo. No entanto, precisava, e muito, lê-lo.
Eu estava no último período da faculdade de Letras. Aquela era a última leitura que faria para um trabalho da matéria de Brasileira V. O professor era ótimo e muito exigente.
Já havia tido aulas com ele em outros três períodos do curso e nunca tinha conseguido passar de um suado 8 na nota. E eu sempre fui ambiciosa quando se tratava de notas. Sempre queria a nota mais alta.
Com ele, no entanto, não era possível ir muito além.
Então, peguei o livro e comecei a leitura. Era difícil. Não conseguia entender a linguagem de Guimarães Rosa. A história de um jagunço no meio do sertão mineiro era interessante sim. Mas as palavras eram o meu problema.
Guimarães Rosa é um mestre dos neologismos, regionalismos, onomatopeias, jogos de palavras, e de muita poesia em prosa. E não adiantava recorrer ao dicionário. Para muitas das palavras de seu texto, não havia sinônimos.
No término da aula, procurei o professor. Ele, muito educado, me recebeu em sua mesa com um sorriso tímido. Eu lhe disse: Professor, estou lendo o livro, mas está difícil. Tem páginas que leio quatro vezes e não entendo nada.
Ele nem os olhos tirou dos papéis para me responder: Samira, leia mais quatro vezes.
Saí da sala de boca aberta, sem dizer palavra. Não teria jeito, precisava encontrar um caminho para entrar naquelas veredas de Guimarães Rosa.
Então, insisti, insisti muito. Até que o texto se abriu inteiro para mim. A leitura é assim. Como diz lá nos versos de Drummond, é preciso trazer consigo a chave para penetrar no reino das palavras.
E a chave, no meu caso, era o próprio texto. Obedeci ao conselho do professor e insisti com a leitura. Consegui entrar no universo de Guimarães Rosa, no sertão de Riobaldo. E me envolvi tanto com esse sertão que era como se estivesse lá de fato.
Passei a ler em todo momento que conseguia. No ônibus, na sala de espera do consultório médico, no intervalo das aulas da faculdade. Carregava aquele livro grosso para toda parte.
Terminei o livro com um misto de orgulho e amor. Orgulho por ter conseguido vencer as barreiras, as minhas próprias barreiras como leitora; e amor pela literatura, pela grandeza da obra de Guimarães Rosa.
Fiz o trabalho. O último do curso. Não consegui a nota máxima, porque o professor não dava a nota máxima para ninguém. Ninguém tirava 10 com ele. Mas consegui um 9. A maior nota que tive nas aulas de Brasileira.
Mas o maior prêmio foi aquela história, aquela experiência de leitura. Já li muitos livros depois de Grande sertão, mas esta ainda é a minha maior leitura da vida. Uma aventura inesquecível!