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Fluxo de consciência: o que é, autores e exemplos

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O fluxo de consciência é um daqueles recursos literários que mexem com a forma como lemos e sentimos uma história. Ele quebra a linearidade, deixa de lado a ordem tradicional e nos joga dentro da mente de um personagem.

É como se estivéssemos ali, acompanhando pensamentos, memórias, sensações e até contradições em tempo real. Na literatura brasileira, esse recurso ganhou cores próprias, adaptando-se à nossa língua e à nossa forma de contar histórias.

O que é fluxo de consciência?

O termo “fluxo de consciência” vem da psicologia, usado inicialmente para descrever a forma como os pensamentos surgem, fluem e se encadeiam na mente humana.

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Na literatura, ele se traduz em uma técnica narrativa que busca reproduzir esse processo de maneira quase crua, sem filtros, sem necessariamente obedecer a uma lógica temporal ou sintática.

É comum confundir fluxo de consciência com monólogo interior, mas há uma diferença: o monólogo interior pode ser mais organizado e até filtrado pelo narrador; já o fluxo de consciência é mais espontâneo, mais fragmentado, mais próximo do caos natural do pensamento.

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Autores estrangeiros como James Joyce, Virginia Woolf e William Faulkner foram pioneiros nesse formato, influenciando gerações de escritores no mundo todo — inclusive no Brasil.

O fluxo de consciência na literatura brasileira

O recurso começou a aparecer de forma mais evidente no Brasil durante o Modernismo, quando a linguagem literária passou a ser vista como espaço de experimentação.

Autores romperam com a narrativa linear, adotaram a primeira pessoa para criar proximidade e deram mais liberdade à subjetividade.

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Aqui, o fluxo de consciência ganhou sotaque e ritmo brasileiros: há nele a oralidade das conversas, a mistura de registros formais e coloquiais, a presença de regionalismos e até elementos da cultura popular.

“Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma…”

(Machado de Assis. O espelho. In: Papéis Avulsos.)

Autores brasileiros que utilizaram o fluxo de consciência em suas obras

Clarice Lispector

A escritora Clarice Lispector, mestre em usar o recurso do fluxo de consciências em suas obras.

Clarice Lispector é talvez o nome mais associado ao fluxo de consciência no Brasil. Obras como A Paixão segundo G.H. e Água Viva são verdadeiros mergulhos na mente e nos sentidos, explorando momentos aparentemente banais que se transformam em epifanias.

“Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro. Mas descubro que não é sequer necessário ter esperança.”

(Clarice Lispector. A paixão segundo G.H.)

Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa, em sua obra-prima Grande Sertão: Veredas, traz um narrador, Riobaldo, que narra sua própria vida sem seguir uma ordem cronológica fixa, costurando memórias, reflexões e digressões que se entrelaçam como a própria fala sertaneja.

“Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros”.

(João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.)

Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles, em alguns contos e romances, como As Meninas, apresenta uma narrativa que alterna perspectivas e pensamentos das personagens de forma fluida, criando um mosaico psicológico.

“E agora chegava um jovem para ficar. Para lembrar (e com que veemência!) o que todos já tinham perdido, beleza. Amor. Um jovem com dentes, músculos e sexo, perfeito como um deus — Não, não precisava rir! —, a antiga medida de todas as coisas. Essa medida eles já tinham esquecido. Com sua simples presença, iria revolver tudo: a revolução da memória.”

(Lygia Fagundes Telles. A presença. In: Seminário dos ratos.)

Cornélio Penna

Cornélio Penna, em A Menina Morta, elabora uma prosa é carregada de atmosferas e sensações, conduzindo o leitor por estados emocionais mais do que por acontecimentos objetivos.

“Teve ímpeto de esbofetear o próprio rosto, pois traira de forma irrisória a memória da criança que fora a sua alegria sem mistura, o seu carinho sem segundas intenções. Tinha sido o seu amor mais puro, aquele que dedicara à menina, e por ele sentia-se redimida de todas as intenções amargas e muitas vezes sangrentas que a tinham agitado em sua vida, de todos os crimes que cometera no recôndito de sua alma, atrás de seus olhos e de sua boca sorridentes. Como ousava agora fingir o que sentia cruelmente, com profunda realidade? Essa era a pior das humilhações, e não poderia suportá-la diante de seu tribunal íntimo, onde poucas vezes pudera perdoar seu gênio inquieto, seu coração confuso exaltado”.

(Cornélio Penna. A menina morta.)

A literatura brasileira tem grandes escritores que recorreram ao fluxo de consciência para demonstrar o mundo interior de suas personagens.

Características marcantes do fluxo de consciência no Brasil

  • Musicalidade da língua: frases longas, pausas, repetições e ritmo próximos da fala.
  • Mistura de registros: a alternância entre a linguagem literária e expressões coloquiais.
  • Temporalidade fragmentada: passado, presente e futuro se sobrepõem.
  • Presença de elementos poéticos: metáforas, imagens sensoriais e jogos de linguagem.
  • Fusão entre pensamento e sensação: sentimentos, memórias e percepções se misturam no mesmo parágrafo.

Por que ler obras com fluxo de consciência?

Esse tipo de narrativa nos aproxima de forma intensa da personagem. É como se, por instantes, nós nos tornássemos aquela voz que pensa, sente e se contradiz.

Ler obras com fluxo de consciência é desafiador, mas também enriquecedor: exige atenção, entrega e, em troca, oferece uma experiência quase íntima com a mente alheia.

Conclusão

O fluxo de consciência é mais do que um recurso técnico — é um convite para entrar em um território onde a lógica dá lugar ao sentir.

Na literatura brasileira, ele encontrou um terreno fértil, incorporando a nossa oralidade, nossa musicalidade e a forma particular como contamos histórias.

Mergulhar nessas obras é abrir espaço para novas formas de leitura, mais subjetivas e profundamente humanas.

Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

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