A crônica e o registro do cotidiano
Filha dos jornais, a crônica é um gênero textual que relata ou faz referência a fatos do dia a dia. Seu objetivo é promover uma reflexão sobre esses fatos, ou seja, em sentido amplo, seu objetivo é nos fazer pensar sobre a vida ao nosso redor.
A crônica, como a conhecemos hoje, nasceu nos jornais. É, portanto, em primeira instância, um texto jornalístico. Daí a sua relação com o cotidiano. Ela, como a notícia, também relata os fatos, só que de uma forma diferente.
Enquanto a notícia é objetiva e busca apenas informar os fatos, a crônica é subjetiva e se debruça sobre os fatos para pensar sobre eles. E, para isso, faz uso de recursos que extrapolam a objetividade jornalística. Por isso, a crônica é também um texto literário.
Quando os jornais começaram a ser produzidos no Brasil, no início do século XIX, os escritores dos textos jornalísticos eram também literatos, ou seja, escritores de literatura. Isso deu à crônica brasileira, desde o seu início, aspectos literários que se mantém até hoje.
Mas, se olharmos ainda mais atrás no tempo, descobriremos que esse hábito de registrar o dia a dia, característico da crônica, se liga a uma outra acepção, a um outro sentido, dessa palavra, a crônica real. Vejamos a seguir.
Origem da palavra crônica
A palavra crônica origina-se do latim chronica que, por sua vez, remete a khrónos, do idioma grego, significando tempo. Portanto, desde sempre, a crônica está ligada ao tempo.
A princípio, no início da era cristã, a palavra crônica era usada para designar o relato de fatos em sequência temporal. Depois, passou a ser o nome dado para os registros da vida na Corte de um rei.
Esse rei contratava um escritor, um cronista para escrever a história do seu reinado. E essa acepção, esse sentido da palavra, como relato histórico, permaneceu por muito tempo.
Inclusive, nos navios de Pedro Álvares Cabral, em 1500, havia um cronista, contratado para relatar ao rei os acontecimentos da viagem. Era Pero Vaz de Caminha. A Carta do Achamento do Brasil, primeiro registro sobre nosso país, foi escrita por ele.
Embora esse texto pertença ao gênero carta, há muito do trabalho do cronista nela, uma vez que Caminha relata com detalhes aspectos bem cotidianos da chegada dos marinheiros portugueses às terras brasileiras.
Mais tarde, no século XIX, com o surgimento dos jornais no Brasil, a palavra crônica ganhou um novo sentido. Esse sentido é o que usamos hoje comumente: texto publicado em jornais e revistas que registra fatos do cotidiano com o intuito de promover uma reflexão sobre eles.
O status de texto literário foi atribuído à crônica um pouco depois. A princípio, embora vista como literatura, era considerada um gênero menor. No entanto, são tantos os escritores de crônica no Brasil, e eles são tão bons no que fazem, que a crônica foi levada para os livros e hoje é reconhecidamente um gênero literário de excelência.
Conceito e características da crônica
Como já foi dito, a crônica é um texto que fala do cotidiano com a intenção de provocar uma reflexão. Mas há ainda outros traços que caracterizam esse gênero textual. Vejamos:
- A crônica se refere ao dia a dia, é um registro da vida, do cotidiano;
- Seus temas, portanto, são os acontecimentos diários;
- É um texto curto, feito para ser publicado em jornais, inicialmente, podendo ir também para as revistas e para os livros;
- Apresenta linguagem clara, simples e coloquial;
- Costuma ser um texto leve e bem humorado;
- Tem caráter efêmero, ou seja, passageiro;
- Há crônicas que permanecem, no entanto, por tratar de temas universais;
- É um gênero textual híbrido, ou seja, pertence ao meio jornalístico e ao meio literário;
- Seu formato é bastante livre, podendo apenas narrar um acontecimento, sendo, assim, um texto narrativo, ou também assumir outras formas como a dissertação e até mesmo o texto em verso;
- Tem como objetivo provocar a reflexão sobre os fatos narrados nela e, para isso, pode usar do humor e da ironia, ou ainda de outros recursos.
Tipos de crônica
A crônica é um gênero textual marcado pela liberdade. O escritor aborda os temas e assuntos da forma que melhor julga. E, por isso, a crônica apresenta diversos tipos que podem ser relacionados tanto à tipologia textual quanto aos temas abordados. Vejamos.
Crônica narrativa
São as crônicas que narram fatos recentes ou não sem que o autor teça qualquer comentário ou interfira no texto. Apresentam personagens vivenciando situações e conflitos em um determinado tempo e espaço.
Crônica dissertativa ou argumentativa
Também chamada de crônica jornalística, é aquela que, além de apresentar um fato, desenvolve uma crítica a respeito dele. O escritor narra o acontecimento e desenvolve uma tese sobre ele.
Também podemos classificar as crônicas pelos temas e assuntos que elas abordam.
Crônica humorística
É aquela que narra uma situação engraçada com o uso do humor e da ironia. Os artistas do humor, também conhecidos como humoristas, em shows de stand up, por exemplo, se aproximam desse tipo de crônica em seus relatos no palco.
Crônica lírica e/ou poética
É a crônica de cunho emotivo, centrada na 1ª pessoa, que fala de sentimentos e provoca no leitor reflexões e emoções.
Crônica esportiva
Dentro dos jornais, encontramos esse tipo de crônica no carderno de esportes. São crônicas sobre os esportes, frequentemente sobre o futebol, e trazem muitas expressões do meio bastante divertidas, inclusive.
Crônica econômica
É aquela que se refere à economia do país e, geralmente, também se relaciona com os assuntos da política. O teor desse tipo de crônica é reflexivo e crítico.
Crônica filosófica
É a que desenvolve um raciocínio em torno de um tema universal, como o amor ou a morte, por exemplo, e nos leva a pensar sobre ele.
Considerando os temas e assuntos abordados nas crônicas, poderíamos fazer uma longa lista de tipos de crônica. Por enquanto, vamos considerar apenas esses.
Exemplos de crônicas
No Brasil, são muitos os cronistas reconhecidos e que escreveram crônicas valiosas. Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Luís Fernando Veríssimo, Martha Medeiros e ainda tantos outros autores iluminam nossas mentes com seus textos nos jornais e livros há muitas décadas.
Vejamos alguns trechos de alguns desses autores maravilhosos.
Machado de Assis
“22 de outubro de 1871
Escapamos de boa!
Ali ao pé de nós, a vinte minutos de viagem, ali na formosa Niterói, esteve há dias prestes a romper uma guerra terrível – uma guerra entre a província do Rio de Janeiro e a Itália.
Dois deputados provinciais propuseram que a assembléia, em nome da província, protestasse ‘contra o escândalo de que é vítima o Santo Padre’ – que esta sendo ‘acometido insólita e traiçoeiramente em seus direitos incontestáveis, e cuja posição é nimiamente precária, injusta, inqualificável, vexatória e atentatória, etc..’
Isto é declarar guerra à Itália, creio que era uma e a mesma coisa”.
(Machado de Assis. Badaladas. In: file:///C:/Users/samir/Downloads/badaladas.pdf)
Carlos Drummond de Andrade
“Um jornal é lido por muita gente, em muitos lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a todos, pelo menos a um certo número de pessoas. Mas o que me brota espontaneamente da máquina, hoje, não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo. O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna. Trata-se de um gato.
Não é a primeira vez que o tomo para objeto de escrita. Há tempos, contei de Inácio e de sua convivência. Inácio estava na graça do crescimento, e suas atitudes faziam descobrir um encanto novo no encanto imemorial dos gatos. Mas Inácio desapareceu — e sua falta é mais importante para mim, do que as reformas do ministério.
Gatos somem no Rio de Janeiro. Dizia-se que o fenômeno se relacionava com a indústria doméstica das cuícas, localizada nos morros. Agora ouço dizer que se relaciona com a vida cara e a escassez de alimentos. À falta de uma fatia de vitela, há indivíduos que se consolam comendo carne de gato, caça tão esquiva quanto a outra”.
(Carlos Drummond de Andrade. Perde o gato. In: https://iclnoticias.com.br/uma-cronica-do-mestre-carlos-drummond-de-andrade/)
Clarice Lispector
“O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.
Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.
(…)”
(Clarice Lispector. Das vantagens de ser bobo. In: https://iclnoticias.com.br/mais-uma-cronica-da-genial-clarice-lispector/)
Rubem Braga
“Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro: “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:
— Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:
— Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro”.
(Rubem Braga. Conversa de compra de passarinho. In: https://iclnoticias.com.br/uma-cronica-do-mestre-rubem-braga/
Como se pode ver, pelos exemplos citados acima, a crônica capta momentos do cotidiano e, com uma linguagem leve, os apresenta ao leitor provocando, de forma direta ou não, uma reflexão a respeito do que é narrado.
A crônica é um texto prazeroso de ler exatamente por isso, nos coloca em um determinado instante da vida e nos faz pensar sobre ele.