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Amor, de Clarice Lispector, pontos relevantes para a prova da UERJ 2026

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O conto Amor, de Clarice Lispector, publicado em 1960 no livro Laços de Família, é a leitura obrigatória para o 1º Exame de Qualificação da UERJ 2026. Essa prova ocorre neste domindo, dia 8.

Ainda que já tenhamos postado recentemente uma análise aprofundada deste conto, achamos interessante levantar mais alguns pontos relevantes sobre essa obra.

Conto Amor: pequeno resumo

Amor conta a história de Ana, uma dona de casa que tem como prioridade cuidar de sua família e de sua casa. Certo dia, ela sai para fazer compras e, sentada no bonde, vê na calçada um cego que masca chicletes.

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Essa visão impacta Ana profundamente. Atordoada, desce do bonde em frente ao Jardim Botânico, onde passa várias horas, mergulhada em seus pensamentos.

Esse passeio é algo completamente inusitado na vida de Ana, pois seus dias eram organizados de forma a cumprir perfeitamente todas as tarefas domésticas e familiares.

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No Jardim Botânico, reflete sobre sua vida, suas escolhas, e sobre a vida em torno dela. Havia um mundo enorme, cheio de prazeres e perigos, oferecendo-se para ela.

Finalmente, Ana percebe a passagem do tempo e corre para casa. Lá, recebe o marido, os filhos, cuida do jantar, mas continua impactada por tudo que viveu durante a tarde. À noite, depois de colocar os filhos na cama, ela vai dormir junto do marido.

Destino de Mulher

“Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”.

O conto inicia-se com Ana, sentada no bonde, um saco de tricô cheio de compras, indo para casa. Ali, seus pensamentos voltam-se para os filhos que crescem fortes e saudáveis e exigem sua atenção.

Pensa também nos afazeres domésticos e no marido. Tudo se encaixava perfeitamente em seu “destino de mulher”, expressão usada no conto e que remete à ideia daquilo que se espera das mulheres enquanto donas de casa.

O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.

Nesse momento, surge já a possibilidade de se questionar esse destino. Em um primeiro momento, vemos que Ana não o escolheu, apenas correspondeu ao papel social que lhe era cabido.

Em outro momento, porém, ela reflete sobre ter escolhido ser a esposa, a mãe, a dona de casa, ela quisera, enfim, esse destino. E isso não por lhe trazer felicidade, mas por lhe dar segurança.

E Ana desempenha o seu destino de mulher de forma exemplar. Os móveis brilham, a casa está limpa, as cortinas foram feitas por suas próprias mãos. Ela fazia com seus dias fossem “realizados e belos”, “dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida”.

A hora perigosa

“Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se”.

Apesar de dedicar-se intensamente à rotina da casa e da família, chegava a hora em que Ana não tinha mais nada a fazer. As tarefas domésticas acabavam, os filhos estavam na escola, o marido no trabalho.

Nesses momentos, o mundo ordenado que Ana criara para si era perturbado. Era o momento em que, já não mais ocupada pelos afazeres do dia, ela tinha tempo para os seus próprios pensamentos.

“Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções”.

A hora perigosa da tarde era o momento em que Ana se via sem ter o que fazer e, sem um papel a desempenhar, confrontava-se com o seu próprio ser e isso já a desestabilizava um pouco. Então, ela tratava logo de abafar a angústia que ameaçava vir à tona e saía para a rua para fazer compras ou outra tarefa relacionada ao lar.

Esse momento do conto funciona como um indício da crise existencial que a personagem vai experimentar a partir da visão do cego mascando chicletes. O estado de alienação emocional em que Ana vive será rompido e suas emoções e pensamentos aflorarão, trazendo o desequilíbrio do qual ela tanto foge.

Um cego mascando chicletes

“Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles”.

É comum nas obras de Clarice Lispector que coisas triviais, acontecimentos simples, até banais, promovam um grande acontecimento interno em suas personagens. De repente, diante de algo inesperado e comum, essas personagens percebem algo dentro de si capaz de mudar a percepção que têm da vida.

Esse traço comum nos textos clariceanos é chamado de epifania, ou seja, a revelação de algo profundo a partir de um evento banal.

O cego estava na calçada completamente parado, com os braços estendidos e mascava chicletes. Ana mantém os olhos fixos nele como se “olha o que não nos vê”. E é nesse momento que o bonde faz um movimento brusco e ela, surpreendida, deixa o saco de tricô cair.

Esse é um momento importante, pois, dentro do saco, havia ovos e estes se quebram. Essa cena funciona como uma metáfora do que está acontecendo dentro da personagem. A visão do cego rompe a harmonia e a estabilidade que Ana lutava por manter.

A partir de então, vêm à tona uma série de questionamentos e angústias. A crise existencial está irremediavelmente instaurada. “O mal estava feito”.

“Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir”.

É preciso também que falemos sobre a ironia contida no fato de Ana perceber algo profundo sobre si mesma, de ter os seus “olhos abertos”, ao “ver” um cego. O recurso da ironia é outro elemento bastante presente nas obras clariceanas, assim como outras tantas figuras de linguagem.

O Jardim Botânico

Imagem do Jardim Botânico

Imersa em seus pensamentos, Ana acaba perdendo o ponto em que desceria do bonde. Desce, então, desonrientada e, depois de algum tempo, percebe estar diante do Jardim Botânico.

Dentro do jardim, caminha pela alameda e senta-se em um banco. Fica ali por horas, o silêncio acalma seus pensamentos. Ela “adormece dentro de si”.

Começa a perceber os sons, os cheiros, a vida ao seu redor. Assim como momentos antes percebera o movimento das ruas como algo estranho e sufocante, ali também, no jardim, tudo lhe parecia novo, inesperado, fora de controle. E vivo, desejável, “fascinante”.

Ao mesmo tempo, Ana sente nojo, um certo horror, pois é a vida com suas contradições que se apresenta a ela. Há nesse trecho do Jardim Botânico uma outra metáfora que, assim como a dos ovos, aparece disfarçada, aqui dentro de um trecho descritivo, as frutas.

As frutas “pretas, doces como mel”, de uma riqueza tal que já anunciam em si a podridão iminente. Elas correspondem à vida que acontece à revelia das mãos de Ana, cheias de vigor e de sombras.

Dentro da cabeça de Ana

A narrativa dos fatos em Amor não decorre de forma linear, apenas encadeando ações e cenas. Os acontecimentos são constantemente entremeados pelos pensamentos da personagem.

Clarice usa o recurso do discurso indireto livre para nos colocar dentro da cabeça de Ana e nos revelar os seus pensamentos. Estes pensamentos não surgem ordenadamente, mas de forma súbita. É o chamado fluxo de consciência.

Os pensamentos afloram na narrativa muitas vezes através de frases justapostas e aliam-se aos sentimentos da personagem diante de seus próprios pensamentos e da vida que ela percebe ao seu redor.

O narrador do conto é onisciente e isso permite que saibamos tudo o que Ana pensa e sente. Assim, sentimos junto com ela toda a crise existencial em que está imersa. E podemos acompanhar a tomada de consciência sobre si própria a partir do momento em que vê um cego.

A volta para a casa

Depois de horas no jardim, Ana se lembra dos filhos e sente culpa. Corre para casa desesperada como se um “desastre” estivesse para acontecer. Em casa, abraça o filho com tanta força que o menino sente medo.

“Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado”.

Ana criara um mundo para si e os seus e esse mundo se rompera. Irremediavelmente como ovos quebrados. Ou como outra metáfora que surge nesse ponto do conto: “estava diante da ostra e não havia como não olhá-la”.

Mãe abraçando o filho.

Agora Ana levava consigo a imagem do cego mascando chicletes. Mesmo em casa, ela continuava a sentir piedade pelo cego. E ânsia por viver angustiava-a.

Finalmente entregou-se aos preparativos para o jantar em família. O evento ocorre tranquilamente e Ana deseja poder reter aquele momento como quem segura uma “borboleta” entre os dedos (outra metáfora maravilhosa referente à efemeridade dos bons momentos).

O estouro do fogão

“Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado”.

No início do conto, há a menção a um problema no fogão da casa de Ana. Ele “dava estouros”. É interessante pensar que era no fogão que preparavam os alimentos. Assim, Ana alimentava a família. E ele estava “enguiçado”. Temos, portanto, aqui mais uma metáfora, um simbolismo referente ao papel social da protagonista.

Embora pareça algo sem importância, nada em literatura é, na verdade, sem importância. E a situação dos estouros do fogão é relevante a ponto de retornar no final do conto, funcionando como um elemento que abre e fecha a narrativa.

No desfecho, o marido está na cozinha diante do fogão. E é ele, o marido, que convida Ana ao descanso e ao retorno à tranquilidade e segurança do lar, da família e do casamento.

“E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia”.

O conto enfim termina com Ana preparando-se para dormir, calma, tranquila, segura. Ela volta ao seu papel inicial, mas já não é a mesma. O dia terminara. Outros viriam.

A linguagem e os traços marcantes da escrita de Clarice Lispector

Para concluir essa análise do conto Amor, de Clarice Lispector, queremos chamar atenção para alguns pontos muito relevantes de sua escrita.

Linguagem poética

A linguagem de Clarice é poética, carregada de recursos expressivos que tornam o texto vibrante e provocador. Clarice, como vimos, recorre constantemente a metáforas e simbolismos para reforçar pontos fundamentais da narrativa.

Usa também da ironia, da antítese, de jogos sonoros e é necessário estarmos atentos a todos esses recursos. Por isso, não basta uma única leitura do conto. É preciso ler várias vezes e com um olhar aguçado.

Epifania

A epifania é um traço fundamental das obras de Clarice Lispector. É comum, e constante, em suas obras que suas personagens sejam levadas a descobertas profundas e desestabilizadoras de si mesmas a partir de um evento banal.

É o que acontece em Amor, quando Ana vê, no ponto do ônibus, o cego mascando chicletes.

Monólogo interior e fluxo de consciência

Esses dois recursos estão intimamente ligados e são possíveis devido ao discurso indireto livre do qual Clarice também faz uso constantemente.

Usando narradores oniscientes, a autora nos leva ao mundo interior das personagens. Seus pensamentos emergem na narrativa, às vezes de forma desordenada, como acontece com nossos próprios pensamentos quando estamos relaxados e nos permitimos pensar livremente.

Existencialismo

Clarice nos apresenta a personagens que estão em busca de si mesmas. Elas são retiradas de sua vida cotidiana, de sua rotina, de seu mundo familiar e confortável e colocadas em situações que as obrigam a descobertas, a revelações importantes relacionadas a si próprias.

Muitas dessas descobertas já estão ali, latentes, dentro delas, esperando só por uma chave, um gatilho, que as traga à tona. É o que acontece com Ana. Seu desconforto com o seu “destino de mulher” já estava dentro dela e ameaçava surgir nas “horas perigosas”.

As descobertas, as epifanias, experimentadas pelas personagens trazem consigo a consciência da própria existência. E essa tomada de consciência é o ponto desestabilizador que muda o mundo interno das personagens, mesmo que o mundo exterior continue o mesmo.

Conclusão

Amor é um conto exemplar da obra clariceana. Sua narrativa concentra os traços principais da escrita dessa mulher admirável e dessa escritora brilhante.

E, como sempre acontece quando estamos diante de uma obra de arte, não são só os personagens de Clarice que terminam a história modificados. Nós também, leitores, saímos diferentes da leitura de seus contos.

Sua escrita nos oferece a oportunidade de também nos encontrarmos com o nosso próprio eu. A leitura das obras de Clarice Lispector são momentos de epifania.

Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

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