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Clarice Lispector e a angústia feminina

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As obras de Clarice Lispector colocam-nos diante de personagens profundas e muitas vezes enigmáticas, levam-nos a mergulhar na essência da existência humana, desnudando sentimentos e pensamentos que muitos de nós mal ousamos verbalizar.

“A angústia é a própria condição de ser um ser humano. […] a angústia não é um problema, é a condição. […] é ela que nos empurra para a frente”.

(Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.)

Entre os muitos temas que Clarice explorou, a angústia feminina se destaca, sendo um fio condutor em sua vasta produção literária. Mas o que exatamente essa “angústia” significa em sua escrita, e como ela ainda é significativa hoje?

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É o que nos propomos a observar e a analisar neste artigo.

O cotidiano como palco da angústia

Em Clarice, a angústia feminina raramente se manifesta em grandes dramas externos. Pelo contrário, ela floresce no cotidiano, nas pequenas epifanias e nos questionamentos internos que assombram suas personagens.

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Mulheres como Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela, ou G.H., de A Paixão Segundo G.H., não vivem grandes aventuras, mas suas vidas são palcos de intensas batalhas internas. Ou como Ana, personagem do conto Amor.

“A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe”.

(Clarice Lispector. Amor.)

Essa angústia surge da colisão entre a rotina opressora e uma busca incessante por sentido, por autoconhecimento. É a mulher que se sente presa em um papel social, que questiona a felicidade imposta, que busca uma voz para expressar o inexpressável.

Foto da escritora Clarice Lispector.

Clarice nos mostra que a verdadeira dor não está apenas nos grandes eventos, mas na microfísica das emoções, no silêncio dos pensamentos e na incapacidade de se conectar plenamente com o mundo e consigo mesma.

A solidão e a busca por identidade

Um dos pilares da angústia clariceana é a solidão existencial. Suas personagens, muitas vezes cercadas por pessoas, sentem-se profundamente sós em suas inquietações.

“Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar – a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas”.

(Clarice Lispector. A paixão segundo G.H.)

Essa solidão não é apenas física; é uma solitude da alma, um descompasso entre o que se sente e o que se consegue comunicar. É a dor de não ser compreendida, de carregar um universo interior que poucos ou ninguém conseguem alcançar.

Paradoxalmente, a solidão impulsiona uma busca desesperada por identidade. Quem sou eu para além dos papéis que a sociedade me impõe? O que desejo de verdade? Qual é o meu lugar neste mundo?

As mulheres de Clarice questionam o casamento, a maternidade, a profissão e os padrões de beleza, não de forma revolucionária externa, mas através de uma introspecção dilacerante que as leva ao limite de sua própria existência.

“Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?”

(Clarice Lispector. A paixão segundo G.H.)

É uma libertação que começa de dentro para fora, na coragem de encarar a própria complexidade.

A ruptura com o convencional e a força da linguagem

Clarice Lispector não apenas descreveu a angústia feminina; ela a sentiu e a transformou em arte através de uma linguagem única. Sua escrita, muitas vezes fragmentada, poética e desafiadora, reflete a própria natureza da angústia: irracional, fluida, difícil de ser contida em palavras simples.

Ela usa a linguagem para ir além do óbvio, para tocar o indizível, para nos fazer sentir o que suas personagens sentem. Essa técnica literária é revolucionária, pois permite que a leitora (e o leitor) experimente a angústia de forma visceral, em vez de apenas lê-la.

“O prazer genuíno não é aquele que se encontra na superficialidade, mas sim aquele que se encontra na verdade de si mesmo”.

(Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.)

A força da linguagem clariceana reside em sua capacidade de desconstruir o convencional, de desafiar o leitor a sentir o desconforto e a se identificar com as camadas mais profundas da experiência feminina.

Conclusão

A angústia feminina em Clarice Lispector, portanto, não é apenas um lamento. É um portal. É a manifestação de um profundo desejo de autoconhecimento, de uma busca por autenticidade em um mundo que tenta, a todo custo, padronizar e silenciar as vozes femininas.

Ao mergulhar na obra de Clarice, percebemos que a angústia em sua obra é, na verdade, um motor para a libertação. Ela nos encoraja a encarar nossos próprios medos, a questionar o status quo e a valorizar a rica vida interior.

A autora nos mostra que, ao desvendar a angústia, podemos não apenas nos entender melhor, mas também encontrar um caminho para uma existência mais plena e autêntica.

“Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão”.

(Clarice Lispector. Água viva.)

A literatura de Clarice Lispector continua a ser um farol para todas as mulheres que, em meio ao turbilhão do cotidiano, buscam a si mesmas.

Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.

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