Publicado em 1924, o romance Memórias Sentimentais de João Miramar consolida a proposta inovadora da 1ª Geração do Modernismo na prosa.
Escrito por Oswald de Andrade, esse romance não se limita a narrar uma história; ele subverte a própria estrutura narrativa, apresentando ao leitor uma experiência literária única e fragmentada. Essa é uma obra essencial para compreender a vanguarda modernista no Brasil.
O que é Memórias Sentimentais de João Miramar?
Considerado um dos romances mais importantes do Modernismo brasileiro, Memórias Sentimentais de João Miramar difere radicalmente das narrativas tradicionais.
A obra não possui uma trama linear no sentido clássico, mas é construída como um conjunto de 163 capítulos, em forma de fragmentos curtos, que, através de uma linguagem telegráfica, registram as impressões e as vivências do protagonista, João Miramar.
3. GARE DO INFINITO
Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.
No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai.
Esses fragmentos variam em estilo e extensão, alternando entre prosa, poesia, diário, aforismos e até mesmo listas.
A narrativa acompanha a trajetória de João Miramar desde sua infância em uma fazenda paulista até suas experiências na Europa, revelando suas observações irônicas e críticas sobre a sociedade, a cultura e a vida burguesa.
Trata-se da vida de um homem comum que vive uma vida sem grande acontecimentos. Ele cresce, casa-se com Célia (um casamento por interesse, uma vez que ela é uma moça rica), enriquece, torna-se pai de uma menina, fica viúvo.
É um retrato social e psicológico, mas feito de maneira não convencional, rompendo com a estrutura tradicional e o aprofundamento psicológico do romance realista do final do século XIX.

Características de Memórias sentimentais de João Miramar
Memórias Sentimentais de João Miramar é uma obra que desafia as convenções, utilizando recursos modernistas para expressar suas ideias e criticar o tradicionalismo.
* Estrutura fragmentada e não linear
A principal característica desse romance é sua organização em episódios curtos e aparentemente desconexos.
96. BAR
Dez horas da noite, o relógio farto batia dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão!
Cangalhas com sono arrastavam-se para nós finalizando o serão de amor que Rolah por lições inglesas e futuras vogas em Los Angeles me ofertava depois do jantar.
Eu batia o portão caminhando direto à cidade borrada, no chupachupa de um beijo que ela me deixara no fundo da boca ou medindo a compasso a tortura de mais uma revelação da sua estranha natureza feminina.
Encontrava infalháveis a uma mesa promíscua do Pinoni num açúcar de óperas Machado Penumbra e o Dr. Pilatos. E maledizíamos com musical wishky e soda.
Essa fragmentação imita o fluxo de consciência, os saltos da memória e a velocidade dos tempos modernos, refletindo a descontinuidade da vida urbana e a multiplicidade de estímulos.
* Linguagem experimental
Oswald de Andrade explora uma linguagem concisa, telegráfica e cheia de inovações. Frases nominais, onomatopeias, neologismos, pontuação subvertida, oralidade, todos esses recursos aproximam a escrita dessa obra da fala cotidiana e da espontaneidade.
104. CARTÃO POSTAL
“De passeio em Pôrto-Fino na Itália, de barca a gasolina, saúdovos. Nair.”
* Foco narrativo em 1ª pessoa
O narrador do romance é o próprio João Miramar. É ele quem narra a história de sua vida: um homem burguês, entediado e com muito pouco a contribuir para a sociedade e a humanidade.
* Ironia e crítica social
O romance apresenta humor ácido e muita ironia. João Miramar observa a sociedade e expõe suas hipocrisias, preconceitos e a mesquinhez de seus valores. A crítica estende-se, ainda, ao academicismo e ao conservadorismo da arte e da literatura.

O foco de suas críticas é a sociedade burguesa paulistana. São Paulo é o cenário de boa parte dos capítulos e o narrador retrata os costumes e a visão de mundo da época com humor e ironia.
106. VELHOS PAULISTAS
Apagavam-se como se uma vergonha dos antigos fios de barba os amarrasse no confronto sírio-itálico com a ricada vitoriosa e gritante sem pais nem leis. Botinas de elástico.
Compensadores piratas gordos prometiam-lhes genealogias fascículas com avoengos retratos.
* Vozes narrativas múltiplas
Embora João Miramar seja o narrador principal, a obra brinca com diferentes vozes e perspectivas, dando a impressão de um caleidoscópio de visões.
O próprio texto é apresentado como uma edição póstuma de suas memórias, com prefácio e notas que adicionam camadas de ironia.
* Influência das Vanguardas Europeias
O livro reflete diretamente a influência das vanguardas artísticas europeias, como o Cubismo (na fragmentação da realidade) e o Futurismo (na valorização da velocidade e da tecnologia), absorvidas e adaptadas por Oswald ao contexto brasileiro.
113. CRUZEIRO SEISCENTISTA
A Serra do Mar foi um mergulhado mar de verdura com passarinhos importantes. Depois casas baixas desanimaram a planície cansada. E o arraial arranha-céu buzinou de peixes fritos.
Além de dar ao romance elementos inovadores, caracterizando uma narrativa bastante experimental, a escrita ganha, com os recursos vanguardistas, um teor altamente poético. É possível afirmar, assim, que temos, em Memórias sentimentais de João Miramar, uma prosa poética.
O Enredo
O enredo de Memórias Sentimentais de João Miramar é a própria trajetória do protagonista, narrada de forma descontínua.
60. NAMORO
Vinham motivos como gafanhotos para eu e Célia comermos amor as em moitas de bocas.
Requeijões fartavam mesas de sequilhos.
Destinos calmos como vacas quietavam nos campos de sol parado. A vida ia lenta como poentes e queimadas.
Um matinal arranjo desenvolto de ligas morenava coxas e cachos.
Acompanhamos João Miramar desde sua infância despreocupada no interior paulista, passando pela morte do pai e a mudança para a capital. Em São Paulo, ele se casa com Célia, uma união de conveniência, e posteriormente embarca para a Europa.

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Um artigo sobre a Semana de Arte Moderna de São Paulo, evento ocorrido em 1922 e que é o marco do Modernismo no Brasil.
Na Europa, João Miramar tem contato com a modernidade e vive experiências que moldam sua visão de mundo.
109. A FARRA
“Meus queridos irmãos.
Estivemos agora em Veneza, onde é muito bonito e célebre.
Mamãe ficou muito assustada com medo de nós cairmos nas ruas que são de água e nós ficamos aflitas, pensando que nem podíamos sair do hotel e só olhar da janela que dava para uns fundos mambembes. Foi a criada do hotel que nos ensinou que tem ruas por
detrás.
Passeamos muito nas barcas chamadas gôndolas e vimos homens andando sem chapéu até de casaca. A Cotita achou que era um escândalo, mamãe também. Meu padrasto disse que ia andar em São Paulo para pegar a moda.
Cotita vive dando escorregão no encerado. Outro dia estendeu no quarto. Ela agora aprendeu um fox-trot ranzinza chamado We Have no Bananas. Fisicamente ela vai muito bem, mas moralmente, faça-me o favor! O meu fim vai ser entrar para um convento!
Nós não vamos embora para o Brasil porque mamãe tem medo dos sobremarinos.
P. S. Vimos a Ponte dos Suspiros onde morreu Romeu e Julieta e tiramos um retrato pegando nas pombas. Nair”.
Ao retornar ao Brasil, a vida segue seu curso. Ele se casa, tem uma filha, arruma uma amante, divorcia-se, viaja, fica viúvo, enquanto a obra retrata os costumes e a vida cultural e social do país.
Os fragmentos funcionam como instantâneos da vida de Miramar, revelando um indivíduo que tenta se adaptar e compreender um mundo em rápida transformação.

A semelhança com Mémorias póstumas de Brás Cubas
É possível observar, logo de saída, que os títulos das duas obras, a de Oswald e a de Machado de Assis são bastante semelhantes.
A estrutura do título é bem semelhante, o escritor modernista trocou o “póstumas” do título de Machado por “sentimentais” e o nome do protagonista também, ao trocar Brás Cubas por João Miramar.
Mas as semelhanças são ainda muito mais profundas. Os dois protagonistas são burgueses, homens ricos e que, por isso mesmo, não trabalham e vivem uma vida cheia de ócio e futilidades.
Ambos narram sua própria vida, enquanto observam a sociedade a que pertencem, criticando-a. Através das duas narrativas, podemos encontrar o retrato de uma sociedade que não muda muito de uma época para outra.
Para concluir, é interessante observar também o nome das personagens também tem particularidades semelhantes. Brás Cubas tem, em seu primeiro nome, uma referência à palavra Brasil, enquanto, seu segundo nome, relaciona-se com a origem de sua família. O avô do protagonista era vendedor de cubas, ou cuias.
Já João Miramar tem um primeiro nome bastante comum no Brasil, o que pode ser interpretado como traço de brasilidade. E Miramar faz lembrar “aquele que mira o mar”, ou seja, aquele que está sempre de olho no que é estrangeiro, que se mira no que é de fora.
Tanto um personagem quanto o outro são representantes da sociedade brasileira e de uma visão de mundo burguesa e capitalista.
Por Que Ler Memórias Sentimentais de João Miramar?
Ler Memórias Sentimentais de João Miramar é mergulhar em um dos textos mais audaciosos e importantes do Modernismo brasileiro.
A obra de Oswald de Andrade desafia o leitor a repensar a própria ideia de romance e narrativa. É um livro que, apesar de ter sido escrito há mais de um século, continua atual em sua capacidade de provocar, de quebrar paradigmas e de nos fazer refletir sobre a linguagem, a memória e a identidade.
Para quem busca entender a essência da revolução modernista na prosa brasileira e apreciar a genialidade de um dos seus maiores expoentes, Memórias Sentimentais de João Miramar é uma leitura indispensável.
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Samira Mór é formada em Letras pela UFJF e Mestra em Literatura pela mesma instituição. É também professora das redes pública e privada há mais de trinta anos. Apaixonada por palavras e livros desde sempre, seu objetivo é partilhar com as pessoas o amor pela leitura e pelos livros.
